Há poucos dias partiu o Luis Azevedo, companheiro desde os tempos da tropa, no Sul de Angola, em 1973. Há 50 anos!
Era um bom amigo, galhofeiro, sincero, leal, próximo. Não sou só eu que o digo, era fácil gostar do Luis.
Há cerca de sete anos nascia a primeira edição do livro Beto dos Windies – Beto Kalu: da cena musical em Luanda à consagração no Algarve, onde se contam histórias ligadas à música e outras vivências em Angola, no Algarve e no mundo. O Luis logo se disponibilizou a ajudar na revisão dos textos, e dessa colaboração surgiu a ideia de incluirmos referências aos meses passados no cumprimento do serviço militar, de agosto 1973 à desmobilização após o 25 de abril.
A sua reprodução nesta crónica não representa mais que um hino à amizade, que não se explica, pratica-se e é sentida… podendo nascer nos contextos mais inesperados.
O Serviço Militar Obrigatório/ A Recruta
O Beto não foi à tropa mas nem todos tiveram essa sorte… e aí a música era outra!
É incontestável que o serviço militar, nos tempos de brasa “adjectivado de” e de facto obrigatório (SMO), se tornou para a grande maioria da rapaziada, tivesse ela sido politicamente indiferente, apoiante ou opositora do antigo regime, uma fonte de grandes e boas amizades que se perpetuaram pela vida fora.
Basta atentar na vasta panóplia de encontros, almoços, etc., cuja publicitação pode encontrar-se não só nos media convencionais como também – fruta do tempo – nas redes sociais.
A recruta da malta de Angola e particularmente da de Luanda não foi excepção àquele efeito.
Daquela interacção resultaram estórias divertidas, algumas das quais serão a seguir lembradas e que ocorreram em 1973 na EAMA, Nova Lisboa, hoje Huambo, durante o COM, a partir do final de Julho.
A instrução dividia-se em 1º Ciclo ou Recruta e 2º Ciclo ou Especialidade. Naquele era dada a instrução básica (ordem unida, tiro, graduações militares, RDM, armamento das NT e do IN, orientação, GAM, etc.) e neste os cadetes frequentavam as especialidades que lhes tinham sido determinadas com base nas classificações obtidas no primeiro e nos cursos superiores de que alguns eram detentores.
O toque de ordem por volta das 17h30m representava, de 2ª a 6ª, a carta de alforria do quartel e a consequente descompressão das obrigações da condição militar, da dureza da instrução e da estupidez de um ou outro graduado.
Seguindo para a cidade, a primeira paragem para confortar as papilas gustativas e arredondar os estômagos fazia-se na Cervejaria Martins, ou Farmácia Martins entre a malta, onde os finos eram servidos em copos refrigerados acompanhando saborosíssimos pregos no pão.
De seguida, já na cidade, atracava-se nas esplanadas do Himalaia, do Ruacaná (inesquecíveis “tações” de morangos com chantilly) e outras, para ver e ser visto pelas beldades em que Nova Lisboa era fértil ou para fumar uns cigarritos, tomar um copo e dar dois dedos de conversa.
Chegada a hora de jantar, entre outros, sobressaía o Restaurante Avis, no qual o encarregado, o Sr. São Pedro, mais parecia pai da rapaziada, tal era a amizade com que a recebia e a insistência para que repetisse mais um bocadinho, ainda que as doses fossem copiosas. Os bifes eram estrondosos em sabor e em tamanho. Dizia-lhes que para passarem fome bastava a comida do quartel. Ele lá sabia!
Por falar nela, o prato mais abominável era o de arroz argamassado com cabeças de peixe fritas. Nem um bocadinho de gravata tinham! Bifes de traineira, dizia-se! As sopas safavam-se, ainda que, de vez em quando, nela aparecessem algumas baratas ou um ratito. Em vinte e cinco ou trinta mesas com oito comensais estas notícias demoravam a espalhar-se, pelo que o golpe era comê-la. Sujava-se o prato com a mixórdia seguinte e metia-se no bolso o pão e a fruta para mais tarde serem saboreados.
Nos 10 minutos que duravam os intervalos das aulas, cinco ou seis garotos do lado de fora do arame farpado, de tabuleiros à cabeça ou pendurados ao pescoço, amontoados com sandes de chouriço, presunto e omelete, apregoavam-nas por meia dúzia de tostões e eram assaltados por dezenas de fardas verdes que lhes esgotavam o stock, quais gafanhotos em seara tenra! Sabia-se lá onde, como e por quem eram feitas as sandes, mas…a fome era leonina!
A 6ª Feira era o dia de ir a casa. Por estrada geralmente boa e maioritariamente feita de rectas a perder de vista, para Luanda 600 Km e ao Domingo à tarde outros tantos, de regresso ao quartel. Família e amigos, era a oportunidade de os rever. Praias e discotecas ou o simples dolce far niente, era o tempo de os gozar.
O Cadete e a Divisa
Durante o 1º Ciclo os instruendos usavam duas divisas verdes, sendo que a do ombro direito tinha uma estrela dourada, que passava a duas no ciclo subsequente. No primeiro fim-de-semana da recruta, em que andar fardado no exterior foi obrigatório, um certo cadete, por certo vaidoso e conquistador, resolveu colocar a divisa estrelada sobre o ombro esquerdo. E para quê? Para, conduzindo avenida acima, avenida abaixo, de braço e ombro esquerdos fora da janela do carro, se mostrar às miúdas que passavam e se passeavam nomeadamente na zona da esplanada do Café Ruacaná, quiçá sonhando ser já general. Ao mesmo tempo que assim procedia, dava duas ou três buzinadelas para chamar a atenção.
Resultado? Foi identificado pela PM que o forçou a regressar ao quartel, onde também entregou uma participação contra ele por se apresentar mal fardado.
O Pestana e o Ácido Fórmico (à laia de homenagem)
O Eduardo Pestana, já falecido, era um tipo baixinho e obeso, um coração grande debruado por um feitio irascível. Protestava contra tudo e contra todos usando uma vernaculidade muito bocagiana.
Durante uma das marchas nocturnas fez-se um pequeno alto (suspensão para descanso durante cerca de 15 minutos, após uma hora de caminhada) debaixo de chuva intensa. Sentada nas bermas da picada, tapada com os ponchos impermeáveis, mochilas de lado e armas em repouso, em silêncio total, a malta procurava recuperar forças.
A certa altura, soltou-se uma forte agitação acompanhada de alguns palavrões e outros tantos gritos. Furiosos, os alferes e cabos milicianos procuraram, em vão, restabelecer a ordem e o silêncio até porque aos ais e uis, c***lhos e f***-se se juntaram algumas boas risadas e uma ou outra boca de circunstância. Os graduados dirigiram-se ao local do alvoroço de lanternas acesas. Apareceu focado o Pestana, aos pulos, em tronco nu e de calças na mão.
Ele quis aliviar as assaduras causadas durante a marcha pela fricção do interior das coxas e tinha desapertado as calças com o propósito de besuntar com creme aquela parte do corpo. Logo se percebeu que o Pestana tinha sido mordido por dezenas de formigas Kissonde, espécie singularmente agressiva, sobre cujo formigueiro se tinha inadvertidamente sentado.
Foi passada uma revista à sua roupa livrando-a das formigas que nela se passeavam e ao Pestana foram arrancadas outras que, com fúria, o ferravam e, teimosas, deixavam as cabeças presas à sua pele.
Entretanto, risada geral pela companhia fora e finalidade da instrução pelo cano abaixo.
O Cabo Miliciano e o Passa-palavra
Este episódio ocorreu junto à lagoa artificial que havia perto do quartel durante uma instrução nocturna de um determinado pelotão.
O instrutor quis testar uma forma de comunicação conhecida como passa-palavra, usada em situações críticas, que exige uma transmissão ipsis verbis para que o seu efeito não se perca. O pelotão estava agachado em fila indiana e o Alferes Miliciano segredou uma mensagem ao ouvido do primeiro cadete para, pelo mesmo processo, ser passada individualmente pelos restantes 30 e tal. Certo é que a mensagem inicial se transformou, no final, em “O Cabo Miliciano é p***leiro”.
Furibundos, os dois graduados quiseram, desde logo, averiguar onde se deu o curto-circuito para castigarem exemplarmente os engraçadinhos, mas, travados pelo sigilo de todo o pelotão, não tiveram sucesso.
Perante o impasse, o pelotão foi “convidado” a mergulhar na lagoa para refrescar ânimos e prevenir atrevimentos futuros.
Consequências? Fardas encharcadas e enlameadas e tempo retirado ao descanso, para limpeza dos equipamentos e do armamento.
Uma Carne Fraca Faz Fraca a Forte Gente
A 10 minutos a pé do quartel existia a Estalagem Imolusa, junto da qual os pelotões evoluíam em instrução e onde, amiúde, se podia observar uma chinesa de diáfano robe vestida, passeando pela varanda.
Numa 6ª Feira, rapaziada que preferiu passar o fim-de-semana em Nova Lisboa em vez de ir para as respectivas cidades, juntou-se num jantar naquela estalagem.
Um dos convivas chegou à fala com essa hóspede que, afinal, trabalhava num cabaré local e combinaram um encontro mutuamente gastronómico. A carne é fraca, já se sabe, e nem a cânfora misturada ao vinho das refeições quarteleiras, como soava, a fazia mais forte!
Alguns, bem regados, quiseram continuar a noitada na Esmeralda, senhora de uma casa de duvidosa reputação, mas bem composta de alegres acompanhantes, onde perdurou a libação à boa maneira da Roma antiga.
A grande maioria daquelas hormonas, já anestesiada, terá recolhido a penates, sem direito a um arraial de Sto. António com foguetes, música e bailarico ou mesmo, tão só, a um modesto balão daqueles oferecidos pelo Serviço de Saúde do quartel.
Um cadete ficou particularmente afectado, no limiar do coma alcoólico. Foi amparado pelo pretendente à chinesita que, apesar de também ter as botas algo trocadas, o conseguiu levar até à pensão onde o emborrachado havia alugado um quarto para o fim-de-semana.
O bom samaritano aguentou estoicamente o resto da madrugada e todo o sábado até que o seu camarada se recompôs, mandando assim às urtigas o encontro com a chinesa.
Moral da estória: a báquica criatura arrependeu-se da maldade que involuntariamente causou, a oriental, até agora, aos costumes disse nada e o seu admirador, 42 anos passados, lamenta não ter provado a gastronomia chinesa.
GLOSSÁRIO
COM – Curso de Oficiais Milicianos
EAMA – Escola de Aplicação Militar de Angola
GAM – Ginástica de Aplicação Militar
IN – Inimigo
NT – Nossas Tropas
PM – Polícia Militar
RDM – Regulamento de Disciplina Militar
SMO – Serviço Militar Obrigatório