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A Arte da Viagem

O viajante é como a criança que procura espanto em cada esquina

Vamos voltar ao dia-a-dia da aventura que ligou Oriente e Ocidente, por terras proibidas, em 1990.

a arte da viagem
Foto DR

Numa expedição como o Raide Macau Lisboa, existe a parte psicológica, onde sonho se mistura com antecipação e expectativas, viajantes feito crianças… mas não é possível esquecer a parte logística (pura e dura).

Por vezes criamos percursos imaginários, raramente conseguindo transformar essas utopias em realidade. Essas viagens podem surgir de livros que lemos ou de músicas que ouvimos, por vezes basta um som para nos transportar para locais mágicos.

Confesso que quando antecipava mentalmente o itinerário do Raide, um lugar vibrava com mais intensidade, Samarcanda, nem eu sei bem explicar porquê!

Claro que é um local cheio de história e mistérios, tendo desde sempre desempenhado um dos papéis mais importantes nos contactos culturais e económicos entre ocidente e oriente, bem no coração das diversas rotas da seda. Samarcanda tem a mesma idade que a Roma Antiga e foi destruída várias vezes, tendo testemunhado forças invasoras de Alexandre, o Grande, e de Genghis Khan, mas, como uma Fénix renascida das cinzas, a cidade erguia-se novamente.

Mas, para além disso, algo no nome Samarcanda me atraía e encantava!

É verdade que Tasquent, Samarcanda e Bucara se tornaram obras de arte da arquitetura, com suas grandes e belas mesquitas, torres e palácios… embora a lenda conte que o Grande Timuor, governante que no século XIV proclamou Samarcanda como sendo a capital do seu poderoso império, vivesse numa tenda ou na sela do cavalo! Historiadores e poetas prosperaram sob o patrocínio de Tamerlão, o seu cognome, e perpetuaram sua arte ao longo dos anos seguintes à sua morte. Pretendia criar a capital mais bonita do mundo e para isso contratou os melhores arquitetos e engenheiros, assim nascendo fábulas que se espalharam da Europa até à China. As ruas estariam decoradas com ricos ladrilhos, mosaicos e pinturas, retratando não só motivos abstratos típicos da arte islâmica, mas também cenas da natureza, do cotidiano e da própria vida de Tamerlão.

Foi no dia 21 de agosto de 1990, pelas 13h, após rodarmos em autoestrada desde Tasquent, que os três Pageros que constituíam o II Raide-Macau Lisboa, que designados por Macau, Taipa e Coloane, “desembarcaram” (utilizei este termo no Diário de Bordo porque estava a ouvir, no leitor de cassetes do carro, “O Barco Vai de Saída”) nessa terra por mim sonhada! Estava lá tudo, as autoridades soviéticas tinham recuperado o que o tempo e as guerras haviam destruído. A visita foi longa e aprofundada, espreitámos cada beco e interior de mesquita, e foi numa dessas bisbilhotices em busca da harmonia perfeita, que perto da magnífica Praça de Registan encontrámos uma fábrica de rubabs, estranha peça de madeira desde há muito considerada o Rei dos Instrumentos, semelhante ao alaúde. Adquiri um, que ainda mantenho.

Não apenas especiarias, seda, porcelana, tapetes e armas eram transacionados na chamada Rota da Seda, mas também instrumentos musicais e mesmo melodias e ritmos eram trocados ou vendidos entre as caravanas, assim difundindo o conhecimento das diversas características da arte da música entre os vários países da Ásia Central. Em Samarcanda sente-se como que uma harmonia física e espiritual, que nos transporta para contos das Mil e Uma Noites.

Por vezes, depois de visitada a utopia, o feitiço desaparece. Com Samarcanda tal não se passou, apenas ficou dissolvida no meu rubab.

Depois do Uzbequistão, ainda atravessámos o deserto de Karakum, onde não pudemos parar, por ser zona militar interdita (o Afeganistão estava ali ao lado, com grandes convulsões internas), e fizemos a única parte do trajeto em que não utilizámos os Pageros, “voando por cima das águas” no Mar Cáspio. Depois, em plena Geórgia, tivemos de vencer as montanhas do Cáucaso, onde deslumbramento se misturou com preocupação! O Taipa e o Coloane não puxavam bem, o motor não desenvolvia! Afinal, o mistério ficou resolvido quando descobrimos que a região estava repleta de minério, e nesses dois carros era onde se transportava mais material metálico (peças sobresselentes, etc.). Eram atraídos para as entranhas da montanha, como se um poderoso imã os agarrasse!

Até agora, o maior problema que temos tido em terras da URSS tem sido a gasolina, pois está esgotada na grande maioria das estações de serviço. Podemos estar à espera, em imensas filas de carros, durante longos minutos, e afinal o depósito continua seco! Numa dessas tentativas, onde felizmente acabámos por atestar os carros, bati ao fazer marcha atrás no Macau, também já aconteceu com outros companheiros de viagem…

As refeições têm sido muito pouco variadas, normalmente carne picada de porco e sopa “atomatada”, não é fácil arranjar cerveja e o vinho não é bom, mas vodka é à descrição! Sem dúvida que a liberdade trazida pela Perestroika não trouxe apenas aspetos positivos à sociedade soviética, isso é mesmo assumido por pessoas com quem falamos, faltam muitos bens de consumo, as prateleiras das lojas estão quase vazias. Há um sentimento contraditório, a esperança mistura-se com preocupação. É curioso que as mulheres, principalmente nas discotecas dos hotéis, vestem-se de forma espampanante, com vestidos compridos repletos de rendas e brilhantes, o que as torna por vezes um pouco decadentes, desejando manter um brilho já inexistente…

As cidades são asseadas, com inúmeros centros de desporto repletos de praticantes, e numerosos espaços verdes onde famílias fazem piqueniques ou passeiam em grandes grupos. Homenagens a escritores e outros artistas espalham-se por todo o lado, seja na cidade ou em zonas rurais. É evidente que o desporto e a educação continuam muito acarinhados!

Há uns dias fizemos limpeza e lavagem profunda aos carros, aproveitámos para melhor acomodar toda a bagagem.

Numa expedição como a nossa, há uma série de tarefas que temos de preparar antecipadamente. Cada um de nós ficou encarregado de arranjar certo material ou de resolver determinadas questões administrativas (vistos, autorizações, etc.), bem como de cuidar da sua constância durante toda a viagem.

• Produtos alimentares (todos os membros do raide): água, conservas, bolachas, rações de combate;

• Material médico e farmacêutico (Fernando Silva): uma mala de primeiros socorros do Grande Prémio de Macau, com todo o equipamento necessário para tratar acidentados, incluindo medicamentos;

• Material sobressalente para as viaturas (Mário Sin e António Teixeira): material para revisões periódicas, incluindo conjuntos de folhas de molas traseiras, amortecedores, filtros de óleo, pneus e correias, etc.;

• Material para filmagens (James Jacinto): câmara de 5 a 7 kg, ligada por cabo a um gravador de vídeo e áudio de 6 kg, a que juntámos um micro direcional e tripé de 5 kg, mais 200 bobines de gravação;

• Livros e outro material para oferta e exposição (Joaquim Correia);

• Como já foi referido noutra crónica, a gestão de contactos e outras decisões administrativas (António Calado).

Claro que todos transportámos bagagem individual, onde se incluíam livros e música para ajudar a passar o tempo ou para possibilitar a tão necessária privacidade, num empreendimento onde muitas horas diárias são passadas “em confinamento” de poucos metros quadrados (a cabine de um automóvel).

Tantos anos depois, os meus companheiros pouco se lembram do que levaram. O James Jacinto levava alguns discos dos Roxette, Paula Abdul e Bon Jovi (não falhava uma noite no Mikado, discoteca do Hotel Lisboa); o Filipe levava os Beatles em versão disco sound; o Teixeira, meu companheiro de viatura, Roberto Carlos e Julio Iglesias.

Posso falar um bocadinho mais dos que eu levei. Confesso que leituras, com os carros em andamento, foram praticamente inexistentes, pois os balanços não o permitiam, apenas antes de dormir ou em algum momento no hotel. Apenas o Guia Lonely Planet sempre me acompanhava. Não levava discmen, apenas leitor de cassetes. Dividi as cassetes em várias áreas: alguma música pop/rock que ouvia na altura (Smiths, Nine Inch Nail); álbuns que tinham a ver com a expedição (“Rota da Seda” de Kitaro, edição de 1980 e “Por esse Rio Acima” do Fausto Bordalo Dias (o tema do trailer do filme do raide foi retirado desse álbum); temas relacionados com Macau (cassete de 1983 da Tuna Macaense; a título de curiosidade, diga-se que em 1991 iria ser editado um disco em Macau pela Tradisom do José Moças, que muito gostaria de ter levado: Vozes e Ritmos do Oriente, que incluía temas de regiões por onde iríamos passar: Xinjiang, Ásia Central, etc.).

A música é boa companheira nos percursos reais ou imaginários.

A viagem do II Raide Macau-Lisboa pode continuar a ser acompanhada em https://www.facebook.com/groups/1639125899579336/

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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