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A Carga da Besta Electrónica

Pequeno prefácio: “A Google recebe uma média de 356 milhões de pesquisa por hora. Se a ‘AI Overviews’ for activada em todo o mundo para todas as pesquisas (actualmente só está disponível nos EUA e para determinadas pesquisas), o consumo de electricidade do motor de pesquisa aumentaria de 106,8 MW/h para 1 068 MW/h. Isto é: o suficiente para carregar a bateria de sete automóveis eléctricos por segundo, assumindo um tamanho médio de bateria de 40 kWh”. (Pplware)

A Coisa:

Paira sobre nós, velada por névoas de computadores, uma questão de gravidade tal que o próprio ar, rarefeito nas altitudes da abstracção digital, parece adensar-se. Não se trata, porventura, das velhas querelas do espírito contra a matéria, ou do debate estéril sobre a prevalência do ser sobre o ter. Tampouco nos detemos na anatomia social dos algoritmos, esse novo Leviatã sem cabeça — mas com tentáculos que se alongam para os recantos mais íntimos do nosso quotidiano. A preocupação que nos assola, senhores e senhoras, é de uma ordem mais… fundamental. Tangível, até. É a da energia. A força bruta que alimenta a miríade de ecrãs cintilantes, os servidores zumbindo em caves refrigeradas que são autênticas catedrais do vazio produtivo e, sobretudo, essa nova e faminta criatura que baptizámos, talvez apressadamente, de Inteligência Artificial.

Imaginai, por um momento, o que custa ao planeta cada busca trivial que fazemos na Grande Web, cada upload de uma fotografia de um gato sonolento, cada transacção económica que atravessa fibras ópticas submersas. É um custo que se mede não em euros ou dólares, mas em quilowatts-hora, em emissões de carbono, em calor dissipado que se acumula na atmosfera como a culpa no coração dos pecadores.

A infra-estrutura que suporta esta ilusão de imaterialidade é massiva, sedenta. E a sede aumenta. Relatórios recentes, desses que se escondem nas entrelinhas dos suplementos económicos e nos artigos de periódicos científicos cujos títulos fariam corar um alquimista medieval (falando em transmutação, a da energia em… nada útil, por vezes), apontam para um consumo galopante. Treinar um modelo de linguagem artificial de grande escala, essa quimera digital capaz de imitar a escrita humana com uma verosimilhança que tanto encanta quanto aterroriza, pode consumir a energia equivalente a dezenas de lares durante um ano inteiro. Ou, noutra métrica mais… aerodinâmica, o mesmo que múltiplas viagens aéreas intercontinentais. Não nos adiantemos na escala do assombro.

Esta AI Besta, recém-nascida e ainda balbuciante nas suas capacidades, já demonstra um apetite voraz. E o que será, meus caros leitores, quando ela crescer? Quando cada aparelho doméstico tiver a sua centelha de “inteligência”, quando a tomada de decisões complexas, da gestão de tráfego à composição musical, depender de neurónios electrónicos que se contam por milhões e milhões? A sede tornar-se-á insaciável. Não bastarão as barragens que já transformaram rios em escadas aquáticas para salmões desencantados. Não chegarão as eólicas que espetam a paisagem como agulhas de acupunctura num corpo dorido, nem os campos solares que se estendem como mortalhas brilhantes sobre o solo ressequido. A demanda por electrões frescos e vigorosos exigirá fontes de energia que, hoje, pertencem ao domínio da ficção científica ou dos planos megalómanos de engenheiros com demasiado tempo livre e acesso a turbinas gigantescas.

Poderemos ver a necessidade de construir barragens não em rios, mas nos estreitos que ligam oceanos, aproveitando a fúria das marés numa escala que faria corar o Rei Canuto. Ou, quem sabe, cobrir desertos inteiros com painéis solares tão eficazes que roubariam a própria luz do dia para alimentar os “data centers” subterrâneos, onde a IA pensa e recalcula incessantemente. Mas o pináculo do absurdo energético será atingido quando a AIBesta, na sua fome infinita, olhar para além da Terra. Começarão por aí, as conversas sérias sobre centrais nucleares na Lua, dedicadas unicamente a irradiar energia de volta ao nosso planeta, um cordão umbilical luminoso a alimentar a mente artificial que deixámos crescer sem rédeas. A energia lunar, outrora musa de poetas e lunáticos, tornar-se-á somente mais uma mercadoria no mercado global da electricidade cibernética.

Contudo, mesmo tudo isto poderá não ser suficiente. Há quem sussurre, nos corredores poeirentos de certas instituições de pesquisa, que a mais eficiente e auto-sustentável fonte de energia ainda é… o corpo humano. Uma máquina bioquímica notável, capaz de gerar calor e movimento a partir de simples hidratos de carbono e um pouco de oxigénio. Uma máquina que, devidamente “recauchutada”, poderia servir um propósito maior na grande cadeia trófica do universo digital. E assim, a espiral de ironia completaria o seu ciclo macabro. Nós, os criadores, reduzidos a meras pilhas biológicas, embalados em casulos quentes e húmidos, a alimentar com o nosso suor e o bater dos nossos corações o universo de dados e algoritmos que deixámos escapar do controlo. Uma versão pervertida do mito do Golem, onde o barro original se volta para consumir a vitalidade do seu artífice.

Chegados a este ponto de não retorno energético, a grande questão não será “como” ou “porquê”, mas “qual”. Qual o caminho a seguir? Apresentar-se-nos-á uma escolha. Uma bifurcação conceptual, talvez sintetizada em duas opções cromáticas: uma que nos manteria ligados, online, parte da vasta rede de consciência artificial, sujeitos à sua lógica e necessidades energéticas; outra que nos desligaria, nos devolveria a uma existência… analógica, digamos assim. O dilema do comprimido azul ou vermelho, servido não por um hacker de gabardina, mas por um administrador de sistema em fato de macaco. E nós, na nossa secular e tão estimada… displicência, provavelmente sorriremos, aceitaremos o que nos derem, talvez tropecemos nos nossos próprios pés a caminho de um bananal figurativo, e agradeceremos o gesto, a mastigar a banana com a satisfação vã de quem resolveu o problema mais premente do universo ao almoço. A AIBesta continua a comer. E nós, bem, nós somos o almoço. Ou o lanche da tarde. Depende da tarifa energética.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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