No grande teatro da política portuguesa, a mais recente encenação tem como protagonista a separação das freguesias, com a promessa de mais 163 presidentes de junta para somar à miríade de cargos públicos já existentes. E não, não estamos a falar de uma nova edição da “Operação Triunfo”, mas sim de um projeto-lei que, com a aprovação garantida já esta sexta-feira, vai reverter a famosa (e um pouco polémica) “Lei Relvas” que, na sua altura, tinha como objetivo precisamente a diminuição do número de freguesias.
Mas afinal, o que mudou? Numa altura em que muitos olham para a política como um jogo de manipulação de números e interesses, a questão central parece ser, mais uma vez, o bem-estar da pátria… ou, no caso, a criação de mais lugares e “tachos”. Como diria a voz do povo, é mais do mesmo: virar o disco e tocar a mesma música, com a diferença de que, desta vez, o tacho está mais apetitoso e tem nome e sobrenome.
E para quem ainda duvida, a Associação Nacional de Freguesias tem apenas cinco dias para se pronunciar sobre o documento. Claro que, com os prazos apertados, é de imaginar que a análise profunda e crítica do impacto desta reestruturação será profundamente cautelosa, com todos a procurarem as melhores estratégias para garantir o lugar no banquete.
Este movimento de “reversão” é a confirmação de algo que já sabemos, mas que, por alguma razão, teimamos em esquecer: a política portuguesa é uma eterna roda-viva de interesses pessoais e jogos de poder. Não se trata de uma vontade genuína de melhorar a gestão local, nem de uma busca pela eficiência. Trata-se, pura e simplesmente, de abrir mais espaço para a distribuição de lugares e recursos. Afinal, quem é que não gostaria de ser presidente de junta num país onde a escala é tão diminuta que a população de muitas freguesias não chega à dos habitantes de um pequeno prédio?
Em tempos, a Troika – essa entidade frequentemente demonizada por muitos – decidiu dar uma ajuda à nossa economia, impondo, entre outras medidas, a fusão de freguesias. A lógica era simples e imbatível: num país de pequena dimensão, onde muitos concelhos mal têm população suficiente para justificar a sua existência, a racionalização era uma medida necessária. Mas, como acontece com muitas medidas impopulares, a sua execução foi acompanhada por uma onda de críticas, e, em algumas alturas, com a acusação de um “bando de sádicos” que queria ver o povo sofrer.
No entanto, como costumo dizer, a Troika não era, afinal, uma quadrilha de torturadores financeiros. Se a sua presença trouxe dor ao país, ela também trouxe a necessidade de se tomarem medidas sérias para garantir a viabilidade do Estado. Uma delas foi, portanto, a racionalização administrativa. Porém, como o povo português, tal como a política, é fértil em contradições, o que acontece agora é que, depois de sairmos da vigília troikista, lá vamos nós de novo fazer o que nos compete: voltar atrás.
“Há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar”, escreveu Júlio César, e cá estamos nós, ainda a dar voltas à mesma engrenagem política que teima em não andar para frente. Cada decisão tomada é, por vezes, uma dança de vaidades e uma oportunidade para reconstituir estruturas e, claro, garantir mais uns quantos “tachos” para aqueles que sabem como jogar o jogo.
Assim, ao invés de olhar para a reestruturação administrativa como uma medida de eficiência, temos agora a reverter a história, o que é, aparentemente, a política do nosso tempo: tomar decisões baseadas no lugar-comum de que, se os anteriores governantes tomaram uma decisão, a única opção é fazer o oposto, mesmo que a lógica contrária seja absurda.
E é isso que o povo português quer: mais presidentes de junta, mais cargos, mais palcos para quem não se cansa de reverter e desvirtuar tudo o que foi feito em nome da eficiência. Não importa que o número de freguesias ou a sua gestão tenha pouco impacto real no bem-estar da maioria da população, pois, no final, o que conta é garantir que há sempre mais um lugar ao sol para quem souber dar a volta.