Confesso que tenho o maior respeito pelo Papa Francisco e por tudo o que ele representou, mas como português, não posso deixar de me pronunciar sobre a situação que se desenhou com a aproximação do 25 de Abril. A festa da liberdade e da democracia, que nasceu da luta do povo na rua, não pode ser abafada por qualquer tipo de agenda. O fim da ditadura, a vitória da democracia, têm de continuar a ser celebrados com todo o fervor e orgulho que a data merece, independentemente do luto por quem quer que seja
O 25 de Abril de 1974 foi a revolução que marcou a história do nosso país. Conhecida como a Revolução dos Cravos, foi um movimento protagonizado pelos militares, que depuseram o regime ditatorial do Estado Novo e puseram fim a quase 50 anos de opressão. Uma revolução pacífica, que se tornou um marco de luta pela liberdade e pela justiça social, e que trouxe o vento da democracia a todos os cantos de Portugal. Foi um dia em que o povo saiu à rua, um dia que mudou o rumo da história e deu início a uma nova era de direitos e oportunidades para todos os portugueses.
No entanto, o Governo parece ter tomado uma decisão curiosa. Cancelou as festividades associadas ao 25 de Abril, com o argumento de que o luto pelo falecimento do Papa Francisco exige “reserva nas celebrações”. Ora bem, é impossível não questionar: será que a democracia em Portugal tem de ceder à ordem do funeral de um líder religioso? Desde quando o luto de uma figura eclesiástica passa a ter mais peso do que o luto pela liberdade, pela justiça e pelos direitos humanos conquistados a duras penas por um povo que não se calou?
A decisão do Governo traz à tona uma reflexão: qual é o real papel do 25 de Abril na nossa sociedade hoje? Festejamos a liberdade, mas talvez tenhamos de lutar por ela de formas diferentes, face às ameaças mais subtis da atualidade. Não se trata apenas de um aniversário de uma revolução; trata-se de uma recordação constante de que as nossas liberdades, a nossa democracia, a nossa capacidade de viver e expressar livremente são conquistas que não devem ser tratadas com qualquer tipo de menoridade. O 25 de Abril foi feito na rua, pelo povo, e é também na rua que deve ser celebrado, tal como os gritos de liberdade e as esperanças de um país melhor.
Ainda assim, ao que parece, a opção do Governo em cancelar a “agenda festiva” no contexto da morte do Papa assume contornos de uma ironia mais do que pertinente. O 25 de Abril está, portanto, a ser condicionado pela morte de uma figura religiosa. Onde, perguntam os céticos, fica a celebração de uma democracia que, na sua essência, promove a separação entre o Estado e a Igreja? E será que, por um momento, Portugal vai deixar de gritar a sua liberdade em nome de uma cerimónia religiosa, quando o que realmente importa é garantir que o espírito da Revolução de 1974 continue vivo, inclusive nos momentos de adversidade?
A ironia é que, ao tentar submeter o 25 de Abril à agenda de luto, o Governo está a esquecer que a festa da democracia não pode ser cancelada ou limitada por nenhum evento. O que foi conquistado no 25 de Abril não pode ser engolido por um evento que apaga a história com o mesmo fervor com que acende velas. O luto por uma figura, por mais importante que tenha sido, não pode sobrepor-se ao direito de comemorar as vitórias de um povo que, por sua vez, já soubera o que era viver sob o peso da opressão.
É fundamental recordar que o 25 de Abril não é um feriado apenas para os que estavam lá naquele dia. O 25 de Abril é para todos os que hoje respiram a liberdade conquistada. A democracia não pode ser guardada como um parente distante que se visita apenas em tempos de calamidade. A democracia deve ser celebrada, discutida e, acima de tudo, vivida, todos os dias, na rua e em cada esquina do país. E quem duvida disso, pode sempre lembrar-se do maior símbolo da nossa revolução: o cravo vermelho, símbolo de um povo que jamais se calou.
Em Portugal, a festa da liberdade, do 25 de Abril, continuará a ser feita na rua. Não haverá funeral que apague a memória daquilo que foi conquistado naquele dia. E por muito que se queira sobrepor o luto, a democracia civil jamais poderá ser esquecida. No final, será na rua que o verdadeiro espírito do 25 de Abril continuará a brilhar, porque é na rua que ele nasceu e continuará a viver.