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A música em Goa: breve abordagem histórica

Para a página de facebook do jornal O Regiões, temos viajado em Macau, descobrindo alguns dos seus inesperados segredos ligados ao automobilismo.
Mas estas estranhezas são meras curiosidades, que não chegam para assinalar as especificidades próprias de Macau.

Existem alguns lugares no Oriente, onde a presença da cultura portuguesa empresta características especiais a determinados territórios, designadamente em Macau e Goa, mas também em Malaca, Indonésia e Sri Lanka, entre outros locais da Ásia. Como já referi noutro espaço, penso que ao ORegiões também cabe divulgar e promover a cultura portuguesa que subsiste em diversos continentes.

Foto DR

Debrucemo-nos agora um pouco sobre Goa, recuando à última década da presença portuguesa, sublinhando, contudo, que a música por lá continua vibrante!

Música!
Música bela,
arte sem igual
estarás tu, meu ideal,
ao meu alcance,
ao alcance…
dum ente mesquinho
como eu?
Orlando Costa, poema “O meu ideal”, vencedor do concurso literário organizado em 1945
pela revista Ala, publicação dos alunos do Liceu Nacional Afonso de Albuquerque

Dos vários encontros na Ásia, é em Macau (território reintegrado na Republica Popular da China em Dezembro de 1999) e Goa (a mesma situação desde Dezembro de 1961 na Republica da Índia) que mais se nota a presença do Ocidente, muito particularmente a portuguesa. Olhando para a Basílica de São Francisco de Xavier, os cronistas do século XVII diziam que “quem viu Goa não precisa de ver Lisboa”, porém com o passar dos anos a situação foi-se alterando. Já na década de 50 do século passado, escrevia o geógrafo Orlando Ribeiro, num relatório solicitado por Salazar, que Goa “era a terra menos portuguesa de todas as que vira até então”. Actualmente, o facto de em Goa ser menos visível o uso da língua portuguesa, uma vez que em Macau as placas são quase todas em caracteres chineses e também em português, que continua a ser língua oficial no território, contribui para essa possível percepção. Mas o objectivo de criar um simulacro da civilização lusa no Oriente deixou sinais, alguns ocultos, que fascinam e apetece conhecer.

Realce-se que tanto em Goa como em Macau o ensino da língua portuguesa tem vindo a crescer, embora os idiomas locais (konkani/ marathi e cantonense/ mandarim respectivamente) e o inglês continuem a ser predominantes. O konkani apenas foi reconhecido como língua oficial do território de Goa em 1987.

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Ambos são lugares estranhos, misturados, numa combinação quase excêntrica pela singularidade, onde de muros seculares brota cultura na forma de festivais, celebrações e outras manifestações artísticas variadas. 500 anos de vida em comum somam aos milhares que antecederam a chegada dos portugueses, e essa “amálgama criativa” descobre-se bastando passear nas ruas absorvendo alegorias intemporais.

Goa é exótica para os indianos e para os ocidentais (para os portugueses menos).

É como Macau, complexa, dual, só que os seus exuberantes verdes contrastam com o estranho cinzento que o Rio das Pérolas empresta; a humidade em Macau sabe a néon mergulhado em sabores milenares, em Goa ao quente do sal salpicado de especiarias coloridas.

Macau é exótica para os chineses e para os ocidentais (para os portugueses menos).

Como os macaenses, também entre os goeses católicos, na sua maioria antigas famílias hindus que se converteram ao cristianismo, se levanta a questão da identidade, ora encontrando-a nos traços que manifestamente existem ora apontando caminhos para a sua construção (são curiosas as considerações do jornalista de Goa Carmo de Noronha sobre esta matéria). Para além da religião e da culinária, se quisermos encontrar mais traços que sublinhem essa simbiose, em Macau apontaremos o patuá macaense, em Goa talvez a música.

MÚSICA BOA EM GOA
Foto DR

Vamos então discorrer um pouco um pouco sobre a música em Goa, um dia será a vez de Macau. No seguimento do que fizemos, noutros espaços, sobre Angola e na Indonésia, o que mais nos interessa é a chamada música mainstream das festas e bailes, a que fazia dançar à volta das mesas ou nos jardins até de madrugada!

Convém realçar que no nosso levantamento a música lusitana (e também o folclore luso-indiano) surge apenas como um dos géneros de música tocado, ouvido e dançado, entre muito outros sons do mundo: jazz, américa latina, francesa, americana, inglesa, indiana, etc.

Ultimamente Goa tem estado na “ordem do dia” do turismo internacional, não apenas pela redescoberta das suas praias e da nova vaga de música trance, mas também devido a diversos artistas de Bollywood e mesmo Hollywood se terem deslumbrado com as antigas casas senhoriais de tradição portuguesa, estando na moda a sua aquisição e recuperação. Continua a ser o “paraíso restabelecedor” que conta a lenda da criação pelos deuses do território…

E a verdade é que o encanto de Goa continua presente, um abraço de culturas que não passa tanto pela mistura no sangue mas antes pela partilha do dia a dia. Claro que agora existe predominância da cultura hindu, com o consequente esbater das características portuguesas, uma vez que a comunidade católica tem vindo a perder influência, mas em cada esquina continuamos a deparar com cenários de história comparada.

Também em Portugal se tem falado dessa antiga colónia, desde 1987 o mais jovem Estado Autónomo da União Indiana, não apenas pelo facto do Brexit estar a levar muitos goeses a adquirirem passaporte português, mas também pelas consequências da visita de António Costa a Goa em Janeiro de 2017. Dessa viagem, que até incluiu toque sentimental com a sua visita à casa onde seu pai viveu em Margão, surgiram diversos acordos de cooperação empresarial, científica, tecnológica e até cinematográfica, com o interesse de Bollywood em utilizar Portugal como plataforma para a produção de filmes indianos. E não podemos esquecer ter a Índia sublinhado ser António Costa o primeiro chefe de um Governo europeu que tem origem indiana!

Não foi por acaso que tantos músicos goeses, principalmente ligados ao jazz, foram tão importantes em Dar es Salam, Karachi e principalmente Bombaim a partir dos anos 30 do século XX. Enquanto o colonialismo inglês propagava a arte dos negócios, o ensino português, particularmente nas escolas jesuítas, transmitia a arte da música (embora uma das formas de insultar fosse chamar muzg, isto é músico em konkani, talvez por no inicio não ser profissão muito rentável). Essa ligação dos goeses católicos à música manifestou-se não apenas no folclore luso-oriental, com danças mestiças como o mandó, o dulpod e o deckni, mas também na própria vivência cultural em todo o chamado Estado da Índia Portuguesa, onde sons e instrumentos distintos da tradição indiana pululavam nas festas, bailes e rituais religiosos.

Durante 451 anos de história colonial, os goeses católicos usaram a música como mediador de negociação identitária. No contexto político que proibia sonoridades musicais que remetessem para a Índia, no qual o português era a língua oficial, a música ocidental de raiz erudita ou popular constituía a forma de expressão musical autorizada (…) As escolas paroquiais, fundadas em Goa em 1545 e destinadas apenas a alunos do sexo masculino, adquiriram um lugar central, não apenas no processo de evangelização mas também na criação de um paradigma de educação básica dos goeses, ensinando matemática e música para além da escrita e da leitura. No caso da música, o programa de ensino incluía solfejo ( solfas ), canto e aprendizagem de um instrumento, na maioria dos casos o violino. Através desta estratégia colonial, a música ocidental foi totalmente transplantada para Goa, inicialmente com o intuito exclusivo de suporte à instauração de novas práticas religiosas associadas ao catoli- cismo.
Susana Sardo/ Proud to be a Goan : memórias coloniais, identidades poscoloniais e música.

Vamos então descobrir de que forma é que a comunidade católica, designadamente os mais jovens, viviam esses tempos de mudança, tendo sempre presente a sua integração numa sociedade multicultural como era o caso da Índia Portuguesa.

Que música se ouvia e se dançava nos bailes, festas em clubes ou no adro da igreja, feiras ou festividades religiosas ou mesmo em casa ou no rádio? Que petiscos se saboreavam, que roupas se usavam, a que filmes, peças de teatro ou outros espectáculos se assistia? E que orquestras ou conjuntos eram contratados para tocar nos eventos ao vivo (desde logo muito falaremos de Joãozinho e o seu Conjunto Alegre…).

Há pouco tempo li num artigo no Indian Express sobre a nova “movida” em Goa que under the Portuguese, music was a compulsory subject in schools; almost everyone knew how to read and write music and play an instrument. Walking through the neighbourhood, it was common to hear music wafting from homes, a plaintive violin or a jaunty drumroll.

Apesar da pacatez do dia a dia, e de parte da população subsistir com dificuldades, vivia-se uma época que começava a ser vibrante, como que antecedendo o aproximar dos novos tempos, ritmos e sons diversos inundavam as ruas, dançavam-se sons locais até de madrugada (mandó e suas variantes dunlop, decknni, etc), estridentes danças religiosas indianas acompanhavam funerais ou outras celebrações religiosas, rumbas e calypsos, modinhas brasileiras e tangos ou valsas misturavam-se com sons de jazz como o swing, foxtrote ou o recente bebop, já cheirava ao rock and roll que em meados dos anos 60 seria trazido em força pelos hippies, agora transformado em pop/ rock (e as suas variantes yé-yé, etc).

A profusão de cores e sons indianos misturavam-se com a descontracção portuguesa daí surgindo o típico sussegad local, a deliciosa culinária goesa (sem o possível excesso e intensidade da comida indiana mas com um sabor misterioso e único) misturava-se com as comidas tradicionais portuguesa e indiana.

Apesar de contestada, como bem se pode descobrir no livro Maçãs Azuis de Edila Gaitonde (ou em The Liberation of Goa (1987), da autoria de seu marido P. D. Gaitonde), a presença lusitana gradualmente foi criando um goês católico culto mas que também gosta dos prazeres da vida, de música, de beber e comer bem em “conversa sossegada”. Estas características, ainda que toleradas e mesmo parcialmente acolhidas pelas comunidades hindu e muçulmana, não deixavam de escandalizar hábitos onde moderação e limites claramente estabelecidos eram a regra, dando mesmo origem a estorias de libertinagem e outros excessos, glosadas em filmes de Bollywood ou em canções, como no caso do tema Bebdo de Chris Perry. Mas estavam criadas condições para tornar Goa um lugar único na Índia e mesmo no Oriente, onde a miscigenação cultural tem vindo a atrair gente curiosa de todo o mundo. Não foi por acaso que nos anos 60 de algumas bolsas hippies brotaram sons trance, originalmente mistura de melodias indianas e sons ocidentais embrulhados em ritmos e danças tribais.

Nesta breve descrição da vivência social no estado da Índia Portuguesa, e no que respeita às relações entre católicos e hindus (e mesmo dentro de cada uma destas comunidades, embora de forma diferente), há um elemento que deverá ser levado em conta e que, pelo menos para quem analisa de fora e à distancia, poderá tornar-se de difícil compreensão, que é a questão das castas. Não nos vamos adiantar sobre a matéria, apenas lembramos que essa tradição, felizmente em vias de extinção, se pode resumir ao que alguém descreveu da seguinte forma: encontras um individuo que não aceita o teu cumprimento com um aperto de mão e nunca sabes se é para não ficar impuro ou sé para não te transmitir impureza, se é por nojo ou veneração! Em algumas das histórias contadas nestas páginas depararemos com situações constrangedoras…

Já referimos a qualidade do ensino em Goa, mas é importante sublinhar não ser este um aspecto excepcional naquela colónia portuguesa, antes representando o facto de ser a Província Ultramarina (como então se designava) mais desenvolvida, a chamada Joia da Coroa (muito do seu desenvolvimento provinha da exploração de minério… o turismo ainda não tinha descoberto Goa!): mais estradas alcatroadas, administração pública mais qualificada, excelência da Escola de Música de Margão e do Instituto Médico, etc.

Mais tarde voltaremos a este tema.

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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