No fatídico inverno de 2034, a Europa, outrora baluarte de liberdades, sucumbira a uma vaga de regimes autoritários, eleitos à força do desespero e da retórica incendiária da direita dos vinis à janela. Paris transformara-se num deserto cultural onde a Torre Eiffel ostentava um imenso cartaz com o slogan “Família, Tradição e Força”. Em Roma, o Papa enviava newsletters de apoio a políticas obscurantistas. Londres? Bem, depois do Brexit 2.0, fechara-se em muralhas de ironia tóxica e chá sem açúcar.
Mas em Alcains, essa aldeia da Beira Baixa cujo nome vinha de al-Kanîsa, a igreja, acontecia o impensável: democracia viva, embora de formas tão sui generis que fariam Aristóteles corar. Protegidos pelo busto de Ramalho Eanes, que se tornara um símbolo de resistência, os alcaínenses desenvolveram o seu próprio método eleitoral. Em vez de boletins, usavam garrafas de vinho. Cada escolha vinha acompanhada de um brinde – à saúde, à liberdade e ao queijo amanteigado local, agora moeda de troca oficial.
As reuniões da Assembleia Popular, realizadas na tasca da aldeia, eram animadas. Discussões sobre impostos locais eram interrompidas por concursos de quem equilibrava mais chouriços na cabeça enquanto declamava poemas de Camões e Ruben Amorim. As decisões mais importantes eram tomadas numa mistura de lógica cartesiana e jogo do prego. Num momento particularmente controverso, um plebiscito sobre a reintrodução de wi-fi gratuito resultou numa guerra de almofadas no salão de festas.
Enquanto isso, o resto da Europa desmoronava. Em Berlim, a recém-criada “Liga da Ordem” bania o uso de chinelos em espaços públicos, argumentando que “a tradição germânica exige sapatos robustos”. Em Madrid, era proibido rir durante mais de cinco segundos consecutivos, sob pena de multa com o nome “Fragate”. Bruxelas tornara-se uma fortaleza literal, onde os eurodeputados se entretinham com jogos de “quem consegue construir o muro mais alto”. Paulo Rangel, que tinha voltado ao antigo coito, perdia desesperadamente, apesar dos incentivos de Eládio Clímaco.
De volta a Alcains, o “General” (como chamavam o busto de Eanes) recebia oferendas diárias. Os alcaínenses e os milhões de libertários que ali se juntaram, acreditavam piamente que o bronze do busto tinha poderes místicos, protegendo-os das tempestades autoritárias. A aldeia era palco de verdadeiras peregrinações democráticas, com dissidentes de toda a Europa a chegarem em bicicletas enferrujadas ou trotinentes clandestinas, carregando cartazes a dizer “Viva Alcains Livre!”. Rui Tavares pensou que era com ele e um dia agarrou-se ao Busto, beijando-o, a agradecer. Foi corrido à força com volumes de História de Portugal do Mattoso, que eram grossos e doíam.
Assim se tornara Alcains o último reduto de um continente perdido. Quem diria que a resistência à tirania começaria com queijo, chouriço e uma irreverência desconcertante? Talvez o segredo para salvar a democracia europeia nunca tenha estado em tratados pomposos, mas sim nas pequenas aldeias e no espírito de liberdade que, afinal, não se compra – ou talvez sim, por uma garrafa de tinto e o já famoso presunto da liberdade.