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António Carvalho, o menino inquieto e o acordeonista mágico que contagiou três gerações

O menino de 7 anos que tomava conta dos bois e não pôde recusar do seu avô, Bonifácio, as “botas da tropa”, em segunda mão e maiores que o seu pé, sob pena de continuar descalço, é hoje, aos 86 anos, um dos acordeonistas mais conceituados do país, ainda que mantenha a “mesma inquietude” que o fez correr atrás do sonho.
António Carvalho soube passar a sua arte a três gerações ( tem uma neta tricampeã nacional), e a 16 de abril, mais de uma dezena de anfitriões vão tocar os seus acordes para o homenagearem, na aldeia da Murgeira, onde vive.

António Carvalho, o menino inquieto e o acordeonista mágico que contagiou três gerações
António Carvalho

Numa conversa intimista, na sua casa, António revê-se, numa autonomia equidistante do período e que, em vez da escola, tinha de trabalhar a terra. Numa permanente inquietude, o sonho era “sair do campo” e “ter uma profissão”. O acordeão que na sua juventude comprou, a prestações, e que tantas alegrias lhe deu e encantou quem o ouvia e ao seu som dançava, subsiste, como se fosse o repositório de toda uma vida. “Nunca me deu nada! Tudo o que tenho foi por mim conquistado!”.

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Originário de uma família humilde, numerosa e honrada, António Carvalho que nasceu no lugar de Cabeços, Mafra, recorda que à época se vivia nas aldeias de forma muito pobre. O regime político era muito fechado. Não havia conversas e os pais viviam agruras para enfrentar as dificuldades do dia a dia. O diálogo e a ternura com os filhos não se expressavam nos meios rurais, onde as crianças trabalhavam muito e havia um défice acentuado do conhecimento. Nada como é nos dias de hoje, onde há, por vezes, muitos exageros”, diz.

Sem perder o seu objetivo, António da Silva Carvalho foi uma espécie de “saltimbanco” de versatilidade e itinerância, superando intempéries. Aprendeu a ser padeiro e pedreiro. Foi caixeiro-viajante, vendedor de máquinas agrícolas, dono de restaurante, diretor de serviços, presidente e administrador de empresa. Sempre por períodos curtos, pois “não gostava de estar preso”, diz de forma convicta, o que me faz recordar o poema de Fernando Pessoa:

“o meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto”, Livro do Desassossego, de Bernardo Soares (heterônimo).

Na mão exibe com orgulho a sua carteira de músico profissional, com o nº 7166, passada pelo Sindicato e recorda o exame que fez, com êxito, à Inspeção de Música. O seu rosto resplandece ao lembrar-se de ter tocado em muitas aldeias do país e até no estrangeiro: “Fui muitas vezes tocar em França e Alemanha…”. Era um senhor!

António Carvalho, o menino inquieto e o acordeonista mágico que contagiou três gerações

Noto-lhe as mãos finas e confidencia-me que até recusou certos trabalhos para não criar calosidades. “Tive sempre muito cuidado com as mãos! As mãos sempre foram o instrumento do meu trabalho, tocar música! e já lá vão 65 anos…” .

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António foi aprender a tocar acordeão aos 18 anos, no Instituto de Música Vitorino Matono, em Lisboa, o que era “um luxo” e para isso, teve de alugar um acordeão na Malveira, que lhe custava100 escudos por mês e pagava, por lição, 20 escudos.

“Era na altura muito dinheiro. Sim, porque aprender a tocar, é como ir à escola…tem de se aprender o ’bêabá’. Tenho aí carradas de livros de música!”. E sobre este instrumento é perentório: “Não há nenhum instrumento tão completo como o acordeão, mas este não é concertina!”

A principal diferença, além do seu menor tamanho, é que aquelas produzem só uma nota, enquanto o acordeão, instrumento também do século XIX, popularmente utilizado na musica folclórica na Europa e América do Sul, produz muitos acordes”. Na verdade, a concertina, menor, é usada principalmente para música clássica e em várias partes da Irlanda e da Inglaterra. Adota a mesma ação de esticar e pressionar do acordeão, mas as notas são tocadas por botões tipo localizados na lateral e tem a forma de um hexágono.

Na sua constante ânsia de progredir, António Carvalho juntou ao seu conhecimento teórico-musical, o saber e a prática de vários professores de acordeão, entre eles o seu padrinho António Ferreira Cardoso. Também dos professores Manuel Matias, João Barra Bexiga, Bernardino Santos e outros tocadores como Manuel Basílio Alves e Adelino Plácido.

Tocou pela primeira vez no Rancho de Santo André em Mafra. Trabalhou 43 anos ao serviço do Rancho Folclórico, as Cantarinhas de Barro e formou “Os Dois Latinos” um duo composto, primeiro pelo jovem Honorato, e mais tarde por José Fernando. Ao longo de 13 anos este duo correu todo o país.

A sua evolução levou-o a organizar bailes, e com isso a ganhar dinheiro. “Ganhava 100 escudos cada bailarico, ora um homem a cavar ganhava 20 escudos. Valia mais trabalhar sem calos nas mãos!” comenta gracejando.

António que cumpriu o serviço militar sob o comando em Queluz, em artilharia antiaérea fixa, deslocava-se na sua bicicleta “douradinha” , comprada também a prestações e que lhe deu a independência de mobilidade. Foi após a tropa que comprou o primeiro acordeão, o tal, mágico. Tinha então 22 anos. “Apareciam sempre muitos convites para tocar e cada vez ganhava mais. Chegava a ter compromissos de um ano. Tudo contava…a imagem e a dinâmica que imprimia em palco”, que era sempre pequeno para a sua performance.

“Eram muitas noites de trabalho. Muitas vezes a minha cama era o carro”, factos corroborados por Maria da Luz, sua companheira de uma vida, com quem casou aos 27 anos e de quem tem 3 filhas, sete netos e cinco bisnetos. Todos aprenderam acordeão.

António Carvalho, o menino inquieto e o acordeonista mágico que contagiou três gerações

E desse longo percurso, onde se registam êxitos e dissabores, formações profissionais bem sucedidas, prémios e distinções – o ser o melhor vendedor da “Tratores Portugal” distinguiu-o com uma viagem ao Quénia, Seychelles e Mombaça – ficam a doçura da música, a ternura das pessoas com quem se cruzou, o sabor da vitória sobre revezes, a superação de intempéries da vida. O contacto com outros continua a desafiar e a granjear simpatias a António, mas é o palco que transforma o acordeonista e lhe dá vida.

 

 

 

 

 

 

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Otília Leitão
Otília Leitão
Doutorada em Ciências da Comunicação no ISCTE-IUL (2021), Mestre em Comunicação, Media e Justiça Universidade Nova de Lisboa ( 2010-2012). Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa (Menção jurídico políticas). Curso de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (sistema e-learning) Instituto Camões.

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