“De jornal aberto em frente e guardanapo ao pescoço, curvado sobre a cebolada do almoço, eu reclamo em família a pena capital, a prisão perpétua, o degredo, os trabalhos forçados, para os criminosos de que os faits-divers me dão todos os dias o rosário longo: quero sossego, quero ordem, quero decência.
Burguês tímido, reverente, acobardado, por necessidade, imposição, conformismo ou medo, por uma transmissão atávica de humildade, incapaz de me revoltar abertamente contra o mal que me fazem, contra o mal que faço — sou duro no íntimo, e cruel. Quero Justiça intransigente, retilínea e fria — e o meu coração dilui-se na piedade, como um torrão de açúcar no chá quente”.
No modo de ser português, “temos ao mesmo tempo o desejo colérico de punir, e o temor de punir. Queremos a repressão do crime, e a nossa vida está cheia de grandes e pequenos delitos escondidos”. Sacudimos facilmente a água do capote e chutamos os embaraços para os outros. “No elétrico, o condutor horrorizado com a responsabilidade [da denúncia], pensa no dever, na Companhia, desvia os olhos e diz: «Isso agora é com o senhor guarda, não é comigo! Um homem tem que cumprir com a sua obrigação!». E o senhor guarda, olhando por cima das cabeças do público, compõe o cinturão com dignidade: «Isso não é comigo. Lá na esquadra veremos!»”.
José Rodrigues Miguéis, que já aqui referenciei em “É Proibido Apontar!” (livro que contém a crónica “Punir”), ilustra-nos – a si, a mim, a todos nós – como ninguém. Com o seu olhar (e ouvido) arguto, capta a realidade no seu mais ínfimo detalhe, incluindo a que emerge da introspeção e de transfiguração da memória, descrevendo-a criticamente e com precisão. “A vida anda cheia destas pequenas fraudes, quase sempre impuníveis. […] A natureza põe nas almas dos homens pequeninos fermentos de maldade, germes invisíveis de pecado e transgressão. Concebeu solitariamente o seu delito, e vivia feliz de o praticar em segredo, como um bruxo ou alquimista”. O traço neorrealista é evidente.
O escárnio e a maledicência fazem parte do nosso ADN e não há volta a dar. Uma das principais vítimas é a Justiça: se funciona, é porque funciona; se não funciona, é porque não funciona: «A Justiça é uma capa de ladrões!». “Levaram-no preso. Nessa noite, acreditem, o charuto amargou-me como fel. Dormi mal e, logo pela manhã, fui à esquadra pedir que o pusessem em liberdade. Tinha sido uma tentação, disse eu, e eu estava na posse da bengala, e coisa e tal. Impossível: era um flagrante delito, e o preso já tinha ido para o Governo Civil, agora a Lei seguia os seus trâmites. O rapaz não se pôde afiançar, esteve meses no Limoeiro à espera de julgamento, e eu consegui esquecê-lo”.
“Quando me chamaram a depor, no dia da audiência, declarei muito simplesmente que nada queria do réu, nem sequer o reconhecia, e que me parecia um exagero mandar um fedelho daquela idade para a cadeia por causa duma tentação gorada. O meritíssimo juiz nem me deu ouvidos: cascou-lhe quinze dias de prisão e multa (porque era a «primeira vez!») para lhe ficar de lembrança, levando em conta o tempo de prisão já sofrida, e eu, eu fiquei com o remorso de o ter precipitado no caminho do crime, só Deus sabe. Nunca hei-de esquecer o olhar de ódio que ele me lançou: já era o dum profissional!”. Terá o “justiceiro arrependido” ficado a pensar na complexidade da realidade e nos perigos da bazófia simplista que tudo resolve “em 24 horas”?
”O meu coração dilui-se na piedade, como um torrão de açúcar no chá quente”. Num instante me esqueci de quando, “de jornal aberto em frente e guardanapo ao pescoço, curvado sobre a cebolada do almoço, eu reclamo em família a pena capital, a prisão perpétua, o degredo, os trabalhos forçados, para os criminosos de que os faits-divers me dão todos os dias o rosário longo: quero sossego, quero ordem, quero decência”. E humildemente reconheço: ”Aqui está como nós somos. Fracos perante a necessidade irremediável de punir, impotentes para prevenir os males que nos afligem coletivamente, somos duma ferocidade implacável quando estamos a sós. Condenaríamos à morte se não tivéssemos de suportar o olhar de censura do condenado. Cobardes!”.