O silêncio, entre outras definições, é considerado o estado onde existe a ausência do som ou ruído, prevalecendo a calma e o sossego, sem ninguém falar. Contudo, há quem diga que o silêncio está povoado de sons, mas quem fez a guerra sabe que, embora os sons do silêncio não se oiçam, pode-se escutar as suas vibrações mais profundas.
Esse intróito vem a propósito do habitual encontro dos militares que fizeram guerra no antigo ultramar português, uns em Angola, Moçambique e Guiné, outros no Estado Português da Índia.
Na sequência do recebimento caloroso do camarada que revíamos decorridos dezenas de anos, felizes e contentes, deslocámo-nos para o “Restaurante Pastilhas”, onde outros camaradas nossos, acompanhados de respectivas famílias, aguardavam a nossa presença.
As conversas animadas, são entremeadas, aqui e ali, por informações justificativas de ausências inesperadas, que caem como punhaladas, desferidas pela força do destino, a anunciar mais uma tragédia iminente.
O almoço, bem regado com vinho branco e tinto, decorre de forma entusiástica e célere. Sem darmos conta, o tempo voa, quase num ápice, até que chega o momento da angustiante citação dos nomes dos falecidos e a constatação da existência de gritos dolorosos prevalecentes no silêncio inquietante.
O incansável Manuel Lopes, organizador da logística do nosso encontro, digno merecedor de todos os louvores, quando acha que é chegado o momento mais apropriado, posiciona-se no meio da sala, sobe para cima de uma cadeira e começa a mencionar, um por um, todos os nomes dos que partiram, e nós replicamos de pé e em coro, com voz sentida e amargurada, – presente!
Naquele silêncio tumular, o espaço de tempo que medeia, a invocação do nome do falecido e a nossa resposta, é uma autêntica eternidade.
É nessa altura que damos conta de que o silêncio não só é povoado de sons inescutáveis e de vibrações intensas, que percorrem todos os poros do nosso corpo, como também de fortes imagens visionáveis, com a figura dos invocados a surgirem à nossa frente como se aí estivessem presentes, de corpo e alma.
Recordamo-nos claramente que estiveram connosco, em momentos mais diferenciados, tanto doces como amargos, guiados pelo espírito de corpo e união, sem jamais esquecer que, em acções de combate, além de pelejarmos contra o inimigo, era igualmente necessário defendermos a nossa vida bem como a dos camaradas que lutavam connosco, lado a lado.
Naquele momento solene, sente-se perfeitamente que os nomes evocados, não são apenas denominações feitas da junção de algumas letras de forma aleatória, mas são corpos vivos que reclamam que o país se lembre deles, porque foram cumprir uma missão patriótica que, na altura, os dirigentes políticos afirmavam ser necessária e imprescindível.
Não competia àqueles jovens imberbes validar as escolhas feitas pelos governantes, questionar se procediam bem ou mal, apenas tinham de cumprir uma obrigação, ditada pelos interesses superiores da nação, conforme lhes era garantido pelos superiores hierárquicos.
Sem dar por mim, dos arredores de Fátima, sou transportado para o interior das matas angolanas para reviver a longa aprendizagem, os momentos decisivos, principalmente aquele instante determinante que separa a vida da morte.
Para se tomar consciência de que o andar na mata, com a arma empunhada, não é um exercício banal, – é necessário bastante tempo de aprendizagem, sobretudo quando sabemos que o inimigo está emboscado e à nossa espera para nos matar -, pois é preciso ganhar a capacidade de saber decifrar as mensagens enviadas pela ausência de sons naquele imenso espaço circundante a respirar o inaudível pulsar da vida.
Para o combatente experimentado, o silêncio profundo é motivo de desconfiança, assim como o súbito escutar de um som inesperado.
Quando suspeitamos de algum perigo e colocamo-nos em estado de alerta, é o silêncio que necessita de ser estudado e interpretado com a máxima rapidez e eficiência. O mínimo ruído por nós provocado, por mera distracção, pode significar o passaporte gratuito para a vida eterna.
É nessa altura, com o silêncio a ter o papel dominador e imperante, que o gesto e o olhar falam mais do que mil palavras. Basta a mudança da direcção do olhar para o camarada que vai à frente, com concentração máxima e a metralhadora em punho, perceber aquilo que necessita fazer se o silêncio expectante for quebrado.
Pessoalmente, cada nome dito por Manuel Lopes, em voz pausada, sobretudo dos operacionais, transportava-me para o interior da mata angolana e fazia-me recordar o diálogo visual que tivera com aqueles militares, antes de ouvir o indesejável, perigoso e malfadado primeiro tiro.
Dos 55 camaradas que já partiram, propositadamente, não mencionei nenhum, para não ser injusto para com os restantes, até porque pode haver outros que tiveram o mesmo infortúnio e não sejam do nosso conhecimento.
Recordar o passado e fazer a catarse não é somente uma forma de aliviar as agruras da alma, que tantas vezes se mortifica em silêncio, mas também impedir que aqueles que partiram estejam ausentes e jamais sejam esquecidos1.