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As Reformas dos Deuses: Ouro para Uns, Migalhas para os Outros

O Circo Democrático e a Reforma dos Bem-Aventurados. Estamos a poucos dias do 25 de Abril, data sagrada da liberdade, e o país já se enfeita como um bolo de pastelaria: cravos nas lapelas, discursos de vitrina, juras de amor à democracia. Mas quem olha para o país real, aquele que não tem tempo nem estômago para retóricas de cartilha, percebe que a liberdade, essa palavra tão gasta, tornou-se um artigo de luxo. Está disponível, sim — mas só para quem a pode pagar a prestações suaves, com cartão dourado e reforma vitalícia incluída

Vamos aos números, porque as palavras já cansam. Um cidadão que trabalhou honestamente quatro décadas, descontou até ao último cêntimo e fez tudo “como deve ser”, sai do palco com 400 euros por mês e um saco de medicamentos. Do outro lado do espelho, um ex-deputado, que mal aqueceu o banco do Parlamento, arrecada uma pensão digna de monarca escandinavo. Reforma dourada, acumulável e, cereja no topo, vitalícia. Tudo legal, tudo aprovado entre brindes e tachos. Não é ficção — é Portugal.

Chamam-lhe injustiça. Eu chamo-lhe obscenidade institucionalizada. Um insulto com carimbo da República. Enquanto ao povo pedem sacrifícios e contenção, os senhores do regime tratam-se como divindades reformadas. E ainda têm o descaramento de se dizer “ao serviço da nação”, como se votar em piloto automático e desaparecer nas comissões fosse equivalente a 40 anos de fábrica, balcão ou enxada. Comparar um deputado com a Dona Emília, que passou a vida a esfregar degraus e a criar filhos com o salário mínimo, devia ser crime de lesa-dignidade.

O mais tragicómico é que, em muitos casos, a reforma parlamentar é só o início da colheita. Depois vêm os cargos em empresas públicas, as assessorias vitalícias, as presidências de organismos com nomes que nem os próprios titulares sabem pronunciar. Um autêntico festival de tachos, todos bem temperados com dinheiro público. E o cidadão comum, que paga a conta deste banquete? Fica com as migalhas, as filas intermináveis, as consultas marcadas para daqui a dois anos e a conta da farmácia a rebentar pelas costuras.

E não, a culpa não é só dos políticos. É também de quem se habituou à indignação de sofá. O povo tornou-se mestre na arte de revoltar-se ao domingo e resignar-se à segunda. Entre a novela da noite e o jogo da Liga, lá se aceita mais uma vergonha, mais uma notícia sobre reformas milionárias como se fosse o tempo — chove sempre para os mesmos.

Temos um país onde quem trabalha é castigado e quem legisla sobre o trabalho é premiado. Onde quem levanta o país vive mal e quem o afunda vive melhor do que nunca. E se alguém ousa reclamar, recebe logo a etiqueta: populista, invejoso, demagogo ou, pior, ingénuo. Porque neste país, pedir justiça social é quase um acto subversivo.

Sim, o 25 de Abril trouxe liberdade. Mas também nos deu uma nova elite — mais polida, mais bem vestida, mas igualmente voraz. Já não usam botas nem bastões. Agora usam gravatas de seda, assinam pareceres e vivem num mundo onde os problemas do povo são lidos em relatórios que nunca cheiram à rua. Chamam-se democratas, mas vivem como aristocratas.

A liberdade merece celebração. Mas a dignidade exige luta. Porque não há cravo que disfarce o cheiro a mofo que emana deste sistema apodrecido. Um sistema onde o mérito pouco importa e a esperteza compensa sempre. Onde o maior sonho de um jovem já não é trabalhar e contribuir, mas encontrar uma forma de escapar — do país ou do sistema fiscal. De preferência, os dois.

No fundo, vivemos num Portugal onde se aplaude Abril, mas se vive em Outubro. Frio, cinzento e com as mãos nos bolsos, à espera de um futuro que tarda, mas que já se sabe quem vai receber primeiro.

Liberdade sem justiça social é apenas um intervalo entre dois privilégios. E, pelos vistos, este intervalo está cada vez mais curto para muitos — e cada vez mais confortável para poucos.

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Fernando Jesus Pires
Fernando Jesus Pireshttps://oregioes.pt/fotojornalista-fernando-pires-jesus/
Jornalista há 35 anos, trabalhou como enviado especial em Macau, República Popular da China, Tailândia, Taiwan, Hong Kong, Coréia do Sul e Paralelo 38, Espanha, Andorra, França, Marrocos, Argélia, Sahara e Mauritânia.

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