A música de Ryuichi leva-nos para lugares onde a diversidade e a qualidade, regra geral expostas de forma acessível e não erudita, possibilitam explorar o desconhecido, como se viajantes do som nos tornássemos.
E tantos foram os caminhos sonoros percorridos!
Em Março de 1989, uma visita preparada em Macau levou dezenas de kwai-los (forma brincalhona como os chineses apelidam os estrangeiros ocidentais) a Goa, só que algo correu mal e a travessia que deveria ter sido feita de avião entre Bombaim e Pangim transformou-se numa aventura, para alguns bem penosa, de 18 horas por 600 km de má estrada, às curvas e saltos caminho fora, refeições frugais ou quase inexistentes!
Numa das diversas paragens a que o cansaço ou as necessidades naturais obrigavam, conversei longo tempo com Eight Fingers Eddie, sem dúvida o personagem mais carismático da chamada Goa psicadélica. Encontrámo-nos numa espécie de mercearia com cadeiras e mesas sujas, pouco depois de sairmos do tenebroso centro de barracas que preenche os subúrbios de Bombaim. Provinha desta cidade onde fora renovar o passaporte americano e trazia, num ferrugento camião (termo ainda agora utilizado para as coloridas camionetas do tempo colonial), roupas e bugigangas para vender na feira de Anjuna.
Nessa conversa Eddie afirmou ter convivido com Sakamoto e um outro japonês de que não me lembro o nome, que chegaram a tocar com o mentor do Goa Transe, Goa Gil. Seguiram-se relatos de peripécias variadas, talvez com bastante imaginação à mistura…
Eddie referia-se a Haruomi Hosono, cantor e baixista companheiro de Sakamoto na Yellow Magic Orchestra (YMO), de que falaremos mais à frente, e que em 1980 criou o conceito de “sightseeing music”, após ter viajado pela Índia.
Lembro-me de termos longas conversas sobre o projecto que então os ocupava: convidar criadores e consumidores de todo o mundo a pensarem em si mesmos como turistas musicais, absorvendo imagens e sons de culturas estrangeiras com a mente aberta, que cada um assimilaria à sua maneira. Passávamos longas tardes na praia de Colva, perto de Margão, antes de Anjuna se tornar o símbolo hippie de agora.
Yertward Mazamanian, arménio naturalizado americano, então com pouco mais de 30 anos, resolveu assentar durante um tempo, depois de deambular pelo Irão, Nepal e Índia, e escolheu Colva, em Goa. Apesar de ter nascido com apenas três dedos na mão direita, ocasionalmente ganhava algum dinheiro tocando baixo em efémeros grupos de jazz, que gastava em drogas e outros sonhos.
Até à integração de Goa na Índia, Colva era uma das praias escolhidas para a mudança, altura do ano em que os goeses católicos mais abonados se deslocavam para as casas de familiares onde passavam os quentes estios. Com a abertura das fronteiras dentro da Índia e com o estrangeiro, gradualmente a praia foi sendo ocupada por outros banhistas, e o urbanismo desenfreado começou a espreitar.
Na verdade, no início de 1978 Sakamoto colaborou para o álbum de fusão experimental “electro-exotica” de Hosono, criando o tema “Cochin Moon”, onde fundiu música eletrónica com música indiana, incluindo o tema “Hum Ghar Sajan”, uma das primeiras canções “synth raga”. Uma melodia vocal empresta ao tema um toque místico e o solo instrumental agudo quebra o som direto da música clássica indiana, tudo envolto num ritmo “industrial aquático” (denominação por mim agora mesmo inventada, talvez para sublinhar as ondas finas e brancas de Colva…).
Se tiverem tempo e paciência, experimentem ouvir e, quem sabe, poderão ser transportados para Colva em finais da década de 70.
Segundo conta Eddie, Goa Gil terá gradualmente estabelecido as bases do Goa Transe na década de 1960 e 1970, enquanto os hippies, viajantes, buscadores espirituais e um sem-número de pessoas ligadas a manifestações de contra cultura, munidos de algum conhecimento técnico na produção de música eletrónica e atraídos pelo puro desejo de curtir e experimentar, desenvolveram, de forma intuitiva, um novo estilo sonoro.
Quando o americano Gilbert Levey, agora conhecido como Goa Gil, aterrou no aeroporto de Dabolim em 1970, logo procurou Eight Fingers Eddie, de quem já ouvira falar durante a sua viagem espiritual pela Índia. Partira de São Francisco com 18 anos, depois de ter integrado o importante movimento hippie Haight Hasbury, tendo pertencido a diversas bandas rock de Goa, chegando a mesmo a colaborar com Remo Fernandes (um dos muitos músicos goeses mais conhecidos internacionalmente). Em finais dos anos 70 já aprendera yoga com gurus nos Himalayas e, ao descobrir a então germinante música electrónica (Kraftwerk, Can, Neu!, Tangerine Dream e outras bandas experimentais do movimento Krautrock), encontrou a forma de elevar a comunhão que existe na música ao espírito cósmico. Isto era o que os antigos xamãs e grupos tribais de todo o mundo faziam em tempos remotos. Eu limito-me a actualizá-lo!
Em finais dos anos 70 Eddie e Goa Gil terão, portanto, contactado com Sakamoto e Hosono, que terão transmitido estrutura a um ritmo essencialmente ligado aos sentidos, onde o objectivo era encontrar o nirvana através da música, sem ajuda de estupefacientes. Para Goa Gil, cada actuação é um ritual, uma cerimónia onde se exercitam os princípios filosóficos ligados à Trance Dance Experience.
Mas a possível contribuição de Sakamoto para o Goa Transe, estilo de música electrónica quase limitado a Goa (embora Goa Gil atue por todo o mundo, incluindo Portugal), mero episódio sem grande relevância, não pode fazer esquecer a importantíssima obra criativa deste músico.
Com Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi formou o Yellow Magic Orchestra (YMO) em 1978, utilizando, de forma inovadora, uma vasta gama de instrumentos eletrónicos, ganhando sucesso no Japão e internacionalmente.
Tornaram-se pioneiros no uso de sintetizadores, samplers, sequenciadores, baterias eletrónicas, computadores e tecnologia de gravação digital, assim antecipando o “boom eletropop” dos anos 1980.
Na YMO acolheram contributos de músicos como Isao Tomita e Kraftwerk, música tradicional japonesa, jogos de “flippers”, música funk e produções disco de Giorgio Moroder, editando o surpreendente hit “Computer Game” logo em 1978, alcançando o Top 20 do Reino Unido e vendendo 400.000 cópias nos Estados Unidos. Nas primeiras gravações e apresentações, a banda costumava ser acompanhada pelo programador Hideki Matsutake, lançando vários álbuns até interromperem as suas atividades em 1984. Reuniram-se pontualmente nas décadas subsequentes, até ao recente falecimento, em princípios do corrente ano, de Takahashi e Sakamoto.
Sakamoto aportou sonoridades novas à música popular, com grupos como os Japan ou em colaborações com Thomas Dolby, Iggy Pop, Youssou N’Dour ou Brian Wilson, em alguns a solo como Neo Geo (1987) ou Heart Beat (1992) mas principalmente em Beauty (1989) que, na minha opinião, inclui o exemplo da perfeição na música pop no tema “Asadoya Yunta” (acompanhado por “This is the day” dos The The), onde a tradição japonesa desagua na era pós rock and roll trazida pelos Beatles, Rolling Stones, Kings e outros grupos do inicio da década de 60.
“I have visions sometimes when I’m writing contemporary music, even when it’s very logical. For example, for one of my songs on the album Beauty, I was always having visions of Amazonian rainforests, a little plane flying very low over the trees. Trees, trees, trees, and some birds. But the title of the song is ‘Calling from Tokyo’.
Acumulou colaborações com artistas de vanguarda, como a cantora cabo-verdiana Cesária Évora e o brasileiro Caetano Veloso. Waldemar Bastos foi convidado por Sakamoto para fazer parte do projecto “Zero-Landmine”, cujo objetivo é apoiar o trabalho humanitário da “Halo Trust” de ajuda à eliminação de minas e outros explosivos abandonados após conflitos em vários países, como Angola, Kosovo, etc.
Sakamoto atuou várias vezes em Portugal. Em 2002, num espetáculo com os brasileiros Jaques Morelenbaum e Paula Morelenbaum, esgotou duas sessões na Aula Magna de Lisboa. Também por cá, o trio vendeu mais de quinze mil cópias do álbum Casa, que revisitava a obra do mestre da bossa nova António Carlos Jobim. Este disco fora gravado na casa de Jobim no Rio de Janeiro e todas as faixas tocadas no seu piano. Em 2004, Sakamoto colaboraria ainda no quarto álbum de Rodrigo Leão, com o tema António, gravado nos estúdios Right Track, em Nova Iorque.
Criou bandas sonoras para filmes como “The Last Emperor” de Bernardo Bertolucci , Little Buddha e “Merry Christmas Mr. Lawrence” de Nagisa Ōshima, onde contracenou com David Bowie, onde as imagens criadas pelos temas musicais nos fazem reviver as cenas cinematográficas.
Em Discord demonstrou a sua admiração por Claude Debussy, “foi através desse compositor clássico que descobri o movimento impressionista e a possibilidade de encontrar equilíbrio entre estéticas musicais distintas”, e o levou a interessar-se pela etnomusicologia, aprofundando tradições musicais não apenas japonesas, mas também da Índia e África.
Experimentou a ópera, criando em 1999 Life, com encenação de Shiro Takatani, e que contou com a participação de Pina Bausch, Bernardo Bertolucci, Josep Carreras, o Dalai Lama e Salman Rushdie.
Com Alva Noto o seu piano explorou manipulações minimalistas novas, sendo o álbum Vrioon considerado, para a revista Wire, um dos 50 melhores de 2003.
Talvez a sua passagem por Goa, terra estranha, misturada, onde de muros seculares brota cultura esplendorosamente mestiça, o tenha levado a firmar, nos anos 90, isto pode parecer muito hippie, mas quero ser um cidadão do mundo, assim assumindo a mestiçagem oriente/ocidente que impregna grande parte da sua obra…