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Benformoso de faca na língua

A Rua do Benformoso! Tudo preso, na maravilhosa azinhaga de Lisboa, tão injustamente incompreendida p’los espíritos mais sensíveis e delicados da cidade! Que dizer desta rua mítica, berço do fado e palco de incontáveis “crimes de faca da liga”, onde o sangue escorria p’las calçadas no assomar do séc. XX? Ora, diremos que é o coração pulsante da verdadeira Lisboa, aquela que não se vende em postais turísticos nem em roteiros para inglês ver.

Quem hoje se escandaliza com os supostos problemas de segurança na Rua do Benformoso revela uma ignorância tão profunda da história desta zona que até dá vontade de rir. Ou chorar, dependendo do grau de patetice do queixoso. Desde os tempos da lendária Maria Severa que esta rua é palco de encontros e desencontros, de amores e desamores, de vidas vividas no fio da navalha. Ou pensavam que o fado nasceu num salão de chá entre senhoras de luvas brancas a degustarem scones? Não. Foi trazido nas naus, pêlos negreiros, misturou-se com a nossa língua e aportou à Mouraria e a Alfama, ao Poço dos Negros. O Fado é negro, o fado é triste, mas é Benformoso.

Os “crimes de faca da liga” não são novidade no Benformoso. São tão parte integrante da sua essência como as sardinhas são parte integrante dos Santos Populares. As vozes que hoje se levantam alarmadas com a “insegurança” parecem ter acordado de um sono de cem anos. Bem-vindos à realidade, Belas Adormecidas!

A Mouraria sempre foi um cadinho de culturas, um ponto de encontro de imigrantes de todas as partes do mundo. Foi através desta mistura, desta diversidade, que Lisboa se tornou uma verdadeira capital cosmopolita. Quem não gosta que emigre para uma aldeia do interior, onde o maior perigo é ser atacado por um rebanho de ovelhas enfurecidas.

Para qualquer alfacinha que se preze, percorrer o Benformoso é uma questão de atitude. É preciso saber pisar aquelas calçadas com a mesma desenvoltura com que a Severa pisava os palcos improvisados das tabernas. Não é para meninos de coro nem para turistas de sandálias e meias brancas.

A deriva securitária do Governo e o espalhafato policial são uma afronta à essência desta rua mítica. São como tentar domesticar um gato selvagem: ridículo, inútil e potencialmente doloroso.

E como não falar daquela pequena jóia da noite lisboeta que existia no topo da rua? Refiro-me, claro, à infame discoteca “Os Anos 60”. Um nome tão irónico quanto inadequado, pois o que lá se ouvia era uma tortura sonora que faria os próprios anos 60 pedirem desculpa e fugirem envergonhados.

Neste antro de perdição musical, reinava suprema a banda Lucky Duckies. Ah, que espectáculo era vê-los massacrar impiedosamente os clássicos dos Beatles e dos Rolling Stones! As suas versões eram tão “impossíveis” que faziam John Lennon revirar-se no túmulo e Mick Jagger considerar seriamente atirar-se para o caixão do Lennon.

Os Lucky Duckies eram para a música o que um elefante numa loja de porcelanas é para a graciosidade dos cristais de Alcobaça. Tinham o seu público. Talvez fossem encostados à parede para ali estar, quem sabe?

O Benformoso é uma prova de fogo, sim, mas não no sentido que os alarmistas querem fazer crer. É uma prova de fogo da nossa capacidade de compreender e abraçar a diversidade, de viver a cidade em toda a sua complexidade. É uma prova de fogo da nossa capacidade de ouvir, para além do ruído da cidade e das interpretações duvidosas dos fadistas de lenço e risca, o verdadeiro som de Lisboa.

Que os defensores da “ordem” e da “segurança” aprendam a ouvir estas vozes. Que compreendam que a Rua do Benformoso, com todos os seus contrastes e contradições, é um testemunho vivo da resistência e da criatividade lisboeta. É um lugar onde, há milénios, Lisboa se reinventa todos os dias, onde o fado nasce e renasce a cada esquina, e onde, infelizmente, os Lucky Duckies continuaram a tocar, para desespero de todos os que ainda tinham ouvidos. Felizmente, dessa tortura estamos safos, por causa das idades…

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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