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Carta a desempregado

Hoje pouco apetece sair e celebrar aniversários, bem sei. Há um muro à tua frente e um buraco dentro de ti – tens uma culpa estúpida lá dentro, como se fosse tua a responsabilidade de teres vindo parar a isto. Tens a vergonha imensa de te pensares inútil e temes o tempo. Não sabes explicar isto a quem nunca passou por coisa igual. Justificas-te e justificas tudo à tua volta, para que não te apontem o dedo e gritem, só com os olhos e o canto dos lábios, “és um inútil”.

As tardes são o pior. De manhã disfarças com o duche ou a ida ao café para “sair de casa”. Mas à tarde, à tarde tudo se abate sobre ti. O mundo não te perdoa serem 14:22 e não estares de volta ao trabalho. Dás por ti, por vezes, a fugir de ver o Goucha e a Júlia, apenas porque isso é um sinal angustiante que falhaste.

Sim, o desemprego está a subir em surdina, mas como não falam nisso nos 23 canais de notícias, parece que não acontece.

Sabes que nada funciona, nem os empregos na net nem os do IEFP. Ias, cadastrado, apresentar-te quinzenalmente à humilhação de dizer ao Estado que ainda eras vivo, ou já nem sequer isso, porque acabou tudo. À noite tens a cabeça em cima ou por baixo das almofadas. Ou não adormeces ou acordas duas ou três horas depois de te conquistar o sono, muitas vezes em pesadelo, outras tantas sem conseguir pregar olho.

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E depois os comprimidos, os ansiolíticos e antidepressivos, as “esmolas” que sentes receber de familiares ou amigos para sobreviver. Perdeste a dignidade, pensas. Estou drogado, acabei, sentes.

Mas…

É mentira. Tudo o que sentes é uma mentira gigantesca, porque a culpa não é tua.

A culpa é do pulha que te mandou a carta e da grande soberba das empresas; a culpa é de uma mentalidade que te ofende, quando vês que afinal a tua empresa tinha dinheiro aos milhões para comprar os direitos de futebol mas te despediu para poupar trocos. A culpa é dos que te enganaram quando te disseram que a colaboração tinha tanto valor como o contrato, a culpa é dos milhares de idiotas que lambem botas e pensam apenas nos BMW e na quota pessoal de dinheiro sem recibo que lhes vai parar à conta.

Tu tens dignidade. Deita a culpa fora, de vez. Não merecem a tua resignação.

O desespero da falta de dinheiro e a perseguição que o Estado te faz, quer nos impostos quer na obrigação de fazeres prova de vida quinzenal, ou na esmola que ainda te dá, não te torna culpado de nada. Tu mereces essa dignidade porque estás cheio de força nos braços e de sonhos e de vontade de fazer. Quem te ama continua a amar-te.

Não há vergonha nenhuma no sofá que te acolhe o desespero. Todos contados estamos quase nos 500 mil, a olhar para as coisas que nos entusiasmavam e que agora nos parecem sem valor, sem sentido ou sem graça.

Ouve, há uma chamada dentro de ti: és tu, o teu projecto, a tua luta. Tu és bonito porque estás a passar pelo pior pesadelo da tua vida. Eu respeito-te e só te vejo como brilhante e resistente. Não os ouças. Não tenhas pena nem deles nem de ti.

Junta-te a gente boa, ouve música, permite-te descansar, permite-te toda a tristeza do mundo para, depois, erguer a cabeça e encarar o planeta com o sorriso dos cansados: vai conseguir porque os idiotas terão de cair. Tu sabes mais do que eles, tu consegues, se mantiveres o teu “eu” estimado e livre. Não te faças o que eles te fizeram. Respeita-te e ergue-te.

Não te abandones nunca.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista, autor, (pré-agricultor).

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