Comecemos com um minuto de silêncio. Não pelos sem-abrigo, que esses já são parte do mobiliário urbano e nem fazem sombra às esplanadas gourmet. Mas por aquela criatura mitológica a que chamavam classe média. Sim, essa entidade efémera, de cartão de crédito em riste e Renault Clio em leasing, que durante anos sustentou a ilusão de que todos podíamos ter uma casa, uma televisão de ecrã plano e uma máquina de lavar que não sacudisse o prédio.
Hoje, em 2025, a narrativa mudou. Segundo os oráculos do betão — essas associações de vendas de paredes que adoptam nomes de laboratório farmacêutico — o mercado imobiliário está de óptima saúde. Radiante, até. A venda de casas de luxo floresce como a sífilis na Europa oitocentista. Há oferta, há procura, há jantares em rooftops com vista para a miséria. E não, não há crise. Só há pobres.
Os pobres, esses, são outro campeonato. Não jogam o mesmo jogo, nem estão sequer no mesmo tabuleiro. Os pobres não procuram casa: imploram tectos. Vivem num estado de pré-despejo emocional, com 1200 euros mensais e uma criança em idade de comer paredes. Enquanto isso, os “betos” — figuras urbanas fossilizadas, ainda de pulôver aos ombros como se fossem figurantes de um anúncio do BPN de 1994 — arrendam T2 em Telheiras, aguardando serenamente o divórcio e a partilha da PS5.
Entretanto, os políticos fazem o que sabem fazer: prometer. Uns querem mais construção, outros falam em habitação acessível como quem promete unicórnios com amortecedores. Nenhum, salvo honrosas excepções de partidos em vias de extinção (PCTP/MRPP, alguém se lembra?), toca no problema essencial: os milhares de prédios que jazem emparedados, sem tostão nem testamento. Heranças de gente que morreu sem Facebook, agora disputadas por primos de quinto grau e advogados de tachos.
Portugal tornou-se um país de casas sem pessoas e pessoas sem casas. A lógica é imbatível: deixamos que a cidade seja esvaziada para que os investidores internacionais a preencham com silêncio e rendas de 1800 euros por um estúdio onde cabe uma cama de solteiro e um diploma de mestrado em frustração urbana.
Mas, curiosamente, o Estado não sabe quantas casas tem. Não sabe quantas casas estão vazias. Não sabe quantos prédios estão prontos a habitar, a troco de uma demão de tinta e uns canos sem ADN soviético. A ignorância parece ser a única política de habitação transversal aos partidos. E a solução mágica continua a ser sempre a mesma: construir, construir, construir, como se estivéssemos num SimCity com ajustes do FMI.
Claro que depois, quando chove sobre Lisboa, Carlos Moedas arrisca-se a ser atingido por um prédio arrependido.
E no meio de tudo isto, há quem ainda se ofenda quando se diz que em Portugal não há classe média. Há pobres e há pessoas que ainda não perceberam que já são pobres — mas com Netflix. Os tais com carro de empresa, salário de 2500 euros e a esperança de um crédito bonzinho, que só não é subprime porque soa demasiado americano. Chamemos-lhes pingarelhos aspiracionais. Sub-esperantes. Habitus sem habitat.
No fim, o que sobra? Um país onde a única casa verdadeiramente acessível é a do Big Brother, onde se entra por sorteio e se sai com um contrato de exclusividade para engolir sapos na TVI. Ou talvez reste aquela vaga esperança de que um dia os herdeiros se entendam, o Estado acorde, e o mercado deixe de ser um casino em que a banca ganha sempre.
Mas não apostem nisso.
Apostem em buscas de casas em sites de imobiliária escrita debaixo da ponte, com wi-fi do Starbucks.