Dia 8 de março é data importante para lembrar que ainda existem grandes desigualdades de direitos entre homens e mulheres. Mas também se celebra a cultura feminina, as mulheres revolucionárias e as aventureiras, as exploradoras e as cientistas.

Nesta crónica não iremos falar de Catarina Eufemia ou de Ângela Davis, antes nos aproximaremos de Laura Dekker ou Leta Hollingworth: Laura, nascida em 1996 e exploradora dos mares, Leta, psicóloga do século XIX, que refutou as teorias de superioridade intelectual masculina.
Mas vamos emprestar um pouco de estranheza às nossas linhas, recuando a Goa dos últimos anos da presença portuguesa, aproveitando para lembrar alguns personagens pouco conhecidos.
Em princípios dos anos 60 nasceu em Calcutá Debashish Bhattacharya, músico que viria a encontrar uma original forma de fusão entre sons que pareceriam incompatíveis: a guitarra e a cítara indiana. Curiosamente, em 1961, já experiência semelhante acontecera na cidade de Candolim, perto da está-tua do Abade Faria.
Como se sabe, este monge foi pioneiro na utilização do hipnotismo como ferramenta para o estudo da mente, conforme descreveu o médico e neurologista Egas Moniz, primeiro português a receber um Prémio Nobel, no seu livro O Abade Faria na história do hipnotismo. Através do que designou de sonho lúcido, o monge de Candolim como que ocidentalizou a meditação oriental, possibilitando que a ima-ginação induzida viesse mais tarde a ser utilizada por Sigmund Freud nas suas sessões psicanalíticas.
Filho de mãe portuguesa e de pai bramam, José Custódio de Faria nasceu em Candolim em 1746 e depois de ter estudado em Lisboa fugiu para França, uma vez que colaborara com o grupo de conspi-radores que tentaram derrubar o regime português em Goa, a chamada Conjuração dos Pintos. De-fensor da Revolução Francesa (1789), acompanhou uma das secções que, em 1795, atacaram a Con-venção Nacional.
Quem me contou a estranha ligação de Terezinha com o monge cientista, foi seu companheiro ao sol da longa praia vizinha de Calangute.
Fortunato nunca a esqueceu!
Conheceu-a numa Festa de Variedades em Ambagim, onde o conjunto convidado era Ignatius & His Swing Band, músico que ambos adoravam pelos seus “melodiosos e sensuais acordes”.

A figura de Terezinha “dava que falar” desde que assentara em Candolim há poucos meses, após se ter aventurado num iate de pequeno cruzeiro desde Beirute até Goa. Nunca se soube se vinha sozinha ou tinha companhia. Confidenciava andanças em cascatas de surpresas ou façanhas grotescas con-forme a lembrança, aos cachos, tão inesperadamente como a prudência ou receio diluíam a conversa. Não recusava mostrar o seu diário, onde descrevia em pormenor maravilhas como Baalbek no Líbano, a Heliópolis romana, cidade de sagrada luxúria oriental. Constava que o cinzento banal do iate, entre dezenas de livros sobre isotéricas viagens, escondia clandestino haxixe adquirido nas montanhas do Líbano!
De figura esbelta, um pouco ambígena, quase andrógena, modos aprazivelmente distantes, Terezinha encantava ao discorrer sobre o estudo da mente, frisando que se comprazia em descobrir o que os outros pensavam, que conversas tinham, qual a relação entre cultura e comportamento, misturando curiosidade com enriquecimento pessoal. Leitora interessada em literatura e ciência ligadas ao hipno-tismo, que contrabalançava com ligeireza na palavra, fascinava quem a escutasse.
A ideia do tratamento surgiu depois ter lido a obra O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas – onde o Abade Faria aparece numa versão ficcionada – e de ter reparado no anúncio de um Curso de Hipnose que se iria realizar na Escola Médico-Cirúrgica de Goa. Resolveu então criar a sua própria forma de, através da imaginação, poder viajar no tempo, misto de musicoterapia e hipnotismo, onde a música ajudaria ao relaxamento da hipnose! Para isso, inspirando-se em Octaviano Goes, músico de Vernã, mestre da guitarra havaiana que costumava tocar com Ignatius & his Swing Band, adaptou sons já originalmente distendidos à contemplativa ambiência experimental.

A sessão constava de uma breve introdução onde Terezinha introduzia as vantagens do hipnotismo induzido pela música, método há muito usado mas que apenas nos anos 40 encontrara alguma siste-matização científica. Cabia a Alberto Alecrim, figura típica que viria a ser famosa em Macau mas que na altura trabalhava na Rádio de Goa, após ter solicitado ao paciente que “esvaziasse previamente a bexiga”, ler na sua voz pausada e quente um texto que gradualmente era invadido pelos sons magné-ticos da guitarra havaiana. Surgindo do nada, uma tabla distante contribuía para entreabrir a porta hipnótica.

Imagine que está num jardim onde perfumadas flores dançam nos braços duma suave brisa, o seu corpo colado ao chão, repousado, calmo, cada vez mais calmo…
Terezinha conduzia a conversa terapêutica surfando no interior dos pacientes, picando divertida sobre dores e frustrações e, quem sabe, ajudando as desvanecidas cobaias. Não era difícil encontrar volun-tários para as suas empíricas aventuras “científicas”!
Eram sessões privadas, com estatuto sério, que marcaram o restrito núcleo que a conheceu. Ainda se candidatou ao exame de aptidão ao Instituto Abade Faria, mas desistiu quando soube que os castigos corporais eram prática demasiado corrente (ver notícia de O Heraldo de 14 de Março de 2020, onde esse facto é referido).
Fortunato nunca a esqueceu! Enigmático, no seu gabinete repleto de impressos raros e valiosos, de olhar ausente, afiança que “a estranheza da imagem coabita com a imagem da estra-nheza”!
Em Agosto de 1961 parte em surdina, de madrugada, fugindo à monção com rumo desconhecido. Diz quem viu que no interior do navio tinha emoldurados estes versos de Gedeão (Lírio Roxo de 1956)
Viajei por toda a Terra
desde o norte até ao sul;
em toda a parte do mundo
vi mar verde e céu azul.
Em toda a parte vi flores
romperem do pó do chão,
universais, como as dores
do mundo, que em toda a parte se dão.
Vi sempre estrelas serenas
e as ondas morrendo em espuma.
Todo o Sol um Sol apenas,
E a Lua sempre só uma.
Diferente de quando existe
Só a dor que me reparte.
Enquanto em mim morro triste,
Nasço alegre em toda a parte.
A última vez que soube dela, vivia na Ilha de Tavira, no Algarve, e abrira um pequeno consultório para as suas sessões. As notícias chegaram-me através do filho, que me confidenciou existirem muito mais histórias para contar…