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Erotismo Sagrado

O fascínio da mulher oriental, onde erotismo e sagrado se entrelaçam misteriosamente. Dizem que as mulheres japonesas são ousadas e excessivas, as chinesas continuam tímidas e distantes mas ao mesmo tempo enleantes e… as indianas cada vez mais misteriosas e místicas!

Vamos de novo viajar no tempo, contando uma história em Goa acontecida nos idos anos 50, mas que não perdeu o seu encanto e abraça um tema que continua a preencher o imaginário do viajante ocidental e mesmo dos escritores goeses, como veremos mais à frente: o misterioso erotismo das bailadeiras ou devadasi, jovens mulheres bailarinas que eram “dedicadas” à adoração e ao serviço de um deus num templo.

Erotismo Sagrado
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É altura para explicar que as histórias que conto nas crónicas relativas à então designada Índia Portuguesa foram surgindo naturalmente, como flores que brotam duma pesquisa a que me abalancei e foi publicada em livro em 2018. Para esse trabalho, um levantamento sobre a música que se fazia e ouvia nos últimos anos da presença portuguesa em Goa, as fontes de informação iam saltando entre bibliotecas e arquivos, mas também passaram por testemunhos diretos de quem as viveu.

O que agora se descreve são memórias de um antigo militar, que foi membro do Conjunto da Guarnição Militar da cidade de Vasco da Gama, com quem falei no âmbito do citado estudo.

Diga-se que a presença de militares portugueses em Goa, Damão e Diu aumentou significativamente após a tomada de Dadra e Nagar-Haveli pelos Satyagrahas ou combatentes da liberdade em Julho de 1954, constituindo-se em 1960 em cerca de 3500 homens, o que naturalmente se reflectiu na sociedade colonial. Surgiram assim diversos agrupamentos musicais constituídos por militares, onde se destacavam o referido Conjunto da Guarnição Militar de Vasco da Gama e o Conjunto Militar do Destacamento de Engenharia. Interpretavam temas da época, num repertório onde música que se ouvia na Metrópole tinha espaço privilegiado, uma vez que normalmente eram compostos por elementos vindos do continente. Juntamente com as Bandas Militares, como as do Segundo Batalhão de Infantaria e do Primeiro Batalhão de Caçadores, que tocavam essencialmente marchas e hinos militares, ajudavam a manter as tropas e a população entretidas. Claro que também existiam Bandas Civis, como as de Manorá e Pondá, e Bandas Filármónicas.

Os jardins eram locais onde se ouvia muita música ao vivo e se inventavam distracções variadas. As “romarias” em Ponda, com ranchos folclóricos, quermesses e espectáculos de Tiatr rivalizavam com a animada Feira Popular da O.P.M.

Os ranchos folclóricos de música tradicional portuguesa, que ainda agora se podem ouvir em Malaca, foram transplantados para Goa durante o período colonial, como o Malhão, o Vira ou o Corredinho. Em 1952 realizou-se a primeira viagem do Ministro do Ultramar às províncias do Oriente e em Malaca, e Padre Pintado – superior da Missão Portuguesa de Malaca – formou um agrupamento de recepção ao ministro que interpretava diversas danças e canções portuguesas, que acabaram por ser mantidas na comunidade, e portanto muito possivelmente o mesmo terá acontecido em Goa.

Para quem desejar aprofundar o tema, pode consultar o artigo sobre a Feira Mundial do Disco Folclórico em Barcelona 1961, publicado na revista Flama de 7 julho 1961.

Por vezes também actuavam as chamadas bandas de Nankhatai – onde possivelmente os Beatles se terão inspirado no desenho das fardas do Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band. Estes agrupamentos acompanhavam algumas festas da comunidade hindu, interpretando temas do açoreano John Philip Sousa ou outros como Long Way to Tipperary. Sim, é uma mistura estranha típica da região de Bombaim, mas que não cabe agora aprofundar…

Em Dezembro de 1955, a fragata Bartolomeu Dias, comandada pelo o ex-ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues, aportou a Goa, onde organizou diversas recepções e visitas à cidade. Urbano Tavares Rodrigues, no seu livro “Jornada no Oriente”, descreve com mestria um espectáculo de variedades ensaiado pela tripulação:

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Houve marinheiros que disseram versos da sua lavra e contaram anedotas ao microfone, revelando sentido humorístico e aquela solta inspiração do genuíno talento popular. Fizeram-se imitações. Vieram as vozes dolentes do fado, acompanhadas à viola e ao acordeão. Marujos castiços, sempre aplaudidos, de modos bem alfacinhas, ressuscitaram ali as esperas de toiros e os amores desditosos da tradição marialva. E Lisboa tão longe! A tripulação, radiante, vibrava.

Mas voltemos às pitorescas e sensuais recordações de Comandante Quadros, como ainda agora é conhecido, que me recebeu na sua casa em Canacona, no Sul de Goa, para onde voltou após vários anos a residir em Portugal na década de 60.

Comandante Quadros recostou-se na cadeira Voltaire e pegou num velho álbum que o acompanhara quando em 1959 decidiu conhecer a sua família em Lisboa, deixando a terra da sua juventude convencido que não voltaria, como que assumindo a inquietude que há muito descobrira dentro de si. A fotografia mostrava uma jovem ocidental, a face levemente inclinada num sorriso doce e brincalhão, coroa dourada com flores a envolver cabelos soltos e negros. Num colorido esbatido descobria-se uma sala enfeitada com vistosos panos indianos, instrumentos variados espalhados pelo chão de madeira escura, ao fundo um pequeno jardim onde camélias e magnólias envolviam estatuetas de kamasutra, que o casal anfitrião comprara, enfeitiçado com o que vira em diversos templos hindus.

Era a festa de aniversário de um dos elementos da charanga dos tropas, que morava perto do templo de Mangueshi, que distava poucos quilómetros de Pondá. O meu Austin A-35 trouxera-me da Feira Popular até sua casa, onde vivia com a mulher e a filha.

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A descrição arrastava-se lenta, saborosa, salpicada de alguma malícia.

Estavam lá jovens funcionários hindus, com o seu fato branco e de capacete colonial, amigos com quem se davam, apesar das ainda patentes complicações que as castas causavam. Mas a música é arte universal e quando estes jovens começaram a tocar percussão em instrumentos indianos ali guardados, a magia aconteceu.

Por entre as flores do oriente e os símbolos do prazer divino a namorada do tropa dançava, aprendera a dança das bailadeiras!

O seu cabelo entrelaçado no alto da cabeça resplandecia com grinaldas de flores naturais intensamente aromáticas, enquanto fulgentes colares, braceletes e guizos envolviam o pescoço, orelhas, nariz, mãos e pés. A rapariga movia-se pelo prazer da postura, embora com gestos e movimentos inseguros e tímidos. Por mero acaso estavam lá uma professora e uma boa aluna, que se juntaram na voluptuosa dança, avançando com movimentos enleantes, muito graciosas e entregaram-se como se a deusa estivesse a assistir!

Joana quisera fazer uma surpresa ao pai, mostrando os conhecimentos adquiridos nessa misteriosa arte milenar, que tanto fascínio tem causado nos autores de língua portuguesa em Goa. Na verdade, realça-se quase apenas o erotismo esquecendo serem dançarinas com funções específicas no funcionamento dos templos.

Mesmo Baudelaire, na sua escrita expressiva, assim descreveu la bayadere no poema “La serpente qui dance”

A te voir marcher en cadence,

Belle d’abandon,

On dirait un serpent qui danse

Au bout d’un bâton.

Esta é uma interpretação redutora, apenas virada para a sensualidade muitas vezes identificada com prostituição. Exemplo desta errada interpretação da função das bailadeiras (por vezes designadas como devadasi ou em konkani como Gomantak Maratha Samaj) é a história de Lata Mangeshkar, cantora muito conhecida na índia e que esteve no Guinness World Records de 1974 a 1991, por lhe pertencer a maior quantidade de gravações no mundo. Lata era filha de Yesubai, uma antiga bailadeira que trabalhara no templo Mangueshi (em Priol), o que impossibilitou que Lata actuasse em Goa. Ofendida, nunca mais voltou à terra de seu pai, Mangeshi, na taluka goesa de Ponda.

Comandante Quadros, em voz pausada mas quente e sonhadora, relembra a estranha cena.

Nunca esquecerei dessa noite!

Sabe, dizem que as mulheres japonesas são ousadas e excessivas, as chinesas continuam tímidas e distantes mas ao mesmo tempo enleantes e as indianas cada vez mais misteriosas e místicas!

Em Goa, como se junta o toque português, as deusas do kamasutra e dos templos tornam-se mais humanas e acessíveis nas suas danças de sagrado serpentear. Surge um som fascinante, onde o ritmo sincopado da tabla, da murianha e outros instrumentos de percussão se misturam com sopros que naquela sala emanavam de um clarinete, qual miscelânea só possível num momento de paganismo, onde o kamasutra em pedra se misturava com o sagrado ao vivo.

Vale a pena descobrirmos os versos de Roque Miranda, bom exemplo do erotismo que para os escritores goeses representava essa arte, no seu imaginário misturado com proibição e deleite, atração e quase repulsa. Foram extractos retirados do excelente trabalho de Joana Passos “Literatura Goesa em Português nos Séculos XIX e XX: perspetivas pós-coloniais e revisão crítica”

Bailadeira

Morde-lhe o corpo um rico pitambor,
palpa-lhe os seios um chôli de cor.
Um Duppattó à banda, agaloado,
Nôtt ao nariz; nos braços, baiccuriôs
Thuxy ao colo; e orelhas com bugddiôs
Eil-a assim vai às festas de um noivado.

Ao ritmo langoroso da saranga,
A intercalar nos sons de uma murdanga,
Toda ela ondula, tine as painzonans,
avança, volta, gira com denguice,
retorce as mãos com toda a arte e meiguice,
e ei-la a bailar as núpcias pagãs.

Brincam-lhe à flor dos lábios nacarados
de areca e bettle, uns risos estudados…
Gaiato e falso, o seu olhar de luz,
Vaga em todos, em terna languidez.
Crispa à vista a sua bela turgidez.
Toda liró, chic, ei-la assim seduz…

Quando ela assoma, tudo vai à estrada!
P’ra que? Ai! Ver uma rica desgraçada,
Bela infeliz, que sendo a nenunfar,
Se atola na charneca de impudor,
vendendo beijos e mentido amor,
pr’a quem, a toda a hora, os quizer comprar!
Roque B. Barreto Miranda, 1913 in Revista da Índia, outubro 1913

Ou Vimala Devi, in Súria, 1962:

Mistério
Venho do Oriente,
Das terras de sonho
De lótus divinos
Onde serpentes mágicas
Dançam ao som de flautas,
E nos templos há bailadeiras
De corpos ondulantes
Como deusas sensuais!
Venho de longe…
Do refúgio dos amantes,
Das horas de prazer
Em noites de madrepérola.
Vimala Devi, in Súria, 1962

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Joaquim Correia
Joaquim Correia
“É com prazer que passo a colaborar no jornal Regiões, até porque percebo que o conceito de “regiões” tem aqui um sentido abrangente e não meramente nacional, incluÍndo o resto do mundo. Será nessa perspectiva que tentarei contar algumas histórias.” Estudou em Portugal e Angola, onde também prestou Serviço Militar. Viveu 11 anos em Macau, ponto de partida para conhecer o Oriente. Licenciatura em Direito, tendo praticado advocacia Pós-Graduação em Ciências Documentais, tendo lecionado na Universidade de Macau. É autor de diversos trabalhos ligados à investigação, particularmente no campo musical

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