Ontem, num país que jura que é europeu mas onde ainda se batem artistas como se fosse o Entroncamento de 1933, a companhia A BARRACA foi atacada por um grupelho de extrema-direita — desses que se ofendem com os pronomes mas veneram a suástica. Um actor foi parar ao hospital. Os outros à náusea. E o país, como sempre, ao costume.
Não há nada mais solene do que o som de um bofetão dado a um actor. É o equivalente político do incêndio na biblioteca de Alexandria: um acto de guerra contra a memória. Mas neste caso, a memória estava viva, risonha, em palco, e chamava-se Maria do Céu Guerra. Há décadas que A BARRACA é o último bastião da heresia alegre, da cultura não domesticada, do riso que incomoda. Era uma questão de tempo até que os novos inquisidores, armados de farrapos ideológicos e testosterona oxidada, aparecessem a distribuir murros como quem distribui panfletos de treta.
Chamam-lhe “incidente”. É a palavra favorita dos canalhas educados. Incidente é o que se diz quando um cão morde um carteiro, não quando se agride o coração cultural de uma cidade. Mas vivemos numa era em que tudo se minimiza. Onde a extrema-direita aparece nos noticiários como “movimento conservador”, e a polícia toma notas enquanto os hematomas incham.
A extrema-direita não quer diálogo — quer audiência. E os jornais, esfomeados, servem-lhe microfones em bandejas de prata editorial. Basta ver como os noticiários colocam lado a lado um actor espancado e um deputado do Chega! a falar de “provocação cultural”. Equivalência moral servida com molhos de imparcialidade. Um banquete de equívocos.
Mas convém lembrar: a História não é uma aula de cidadania. É um ringue. E os fascistas não se vencem com haicais, mas com pontapés bem medidos. Sim, a violência. A palavra maldita dos bem-pensantes. Mas foi com ela — e não com abaixo-assinados — que se travou a Legião Portuguesa. Foi com ela que um velho com nome de mártir — Soares — sobreviveu a toda uma ditadura e avisou, ali mesmo, na Aula Magna: “Isto vai acontecer de novo.” Não foi poesia. Foi previsão.
Agora chegou. Com botas de borracha em vez de coturnos, mas com o mesmo hálito de enxofre ideológico. E ninguém sabe como lhes responder. Querem-nos tolerantes, democráticos, compostos. Como se fosse possível discutir ética com quem ainda sonha com campos de internamento para artistas e professores. Como se a liberdade se defendesse apenas com slogans.
É preciso dizer: eles são muitos. E barulhentos. Porque têm cúmplices nos púlpitos, nos cafés de aeroporto, nas direcções de jornais. São os que dizem “não concordo com a violência, mas…” — e nesse “mas” cabe todo o fedor da História.
Maria do Céu Guerra, que viu o 25 de Abril e o outro antes dele, sabe que há alturas em que o palco não chega. Que há momentos em que o pano cai, não porque acabou a peça, mas porque entrou um idiota com um murro.
E nesses dias, senhores, não se responde com indignação. Responde-se comk a única língua que a extrema-direita percebe: o bofetão.
Porque a liberdade, essa malcriada, só sobrevive quando assusta.