Aquilo metia ali gente por repleção, mas eu já estava para pagamento. À minha frente só três manos, e nem sequer tinham grande bagagem.
O da frente empurrava um carro com três ou quatro coisas apenas. De penduro, uma criança de dois ou três anos, espetada no topo do carrinho de compras, entretinha-se a esfarrapar um papelucho, por esforços. Logo atrás deste pai, um rapazeco, também com três ou quatro haveres. Baixou-se, de rompante, para apanhar uma nota que ali vinha de nascer.
O de trás, que estava imediatamente à minha frente, com uma litrosa por mão, botou-lhe logo o chanato pra cima, com algum estrondo, e a nota ficou ali confiscada.
Travaram-se de razões, mas ninguém queria abdicar do cabedal. Eu assistia, sem bilhete, e fui de fazer apostas comigo mesmo, considerando que o que calcava, sendo um tanto ventrudo, não iria conseguir apanhar o quinhão sem correr o risco de o outro, mais leve e moço, se antecipar.
Por seu lado, o rapazelho, estava num jogo de paciência, meio vergado, esperando que o das botas se distraísse e aliviasse o pé, para ele se amandar ao pilim. Um empate técnico, portanto.
Neste emmeio, o homem da frente remexia os bolsos, a estalar de rubores – parecia pintado a zarcão – que lhe faltava o efectivo, que, pouco havia, o tinha na mão, justamente uma notita azul, com os algarismos dois e zero, igualinha àquela.
Os beligerantes quiseram desmobilizar, e, com um trocar de olhos, consideraram que deviam dar a nota a quem a perdera, como tudo indicava, por evidências. E, já sem diatribes, o gordo cedeu a vez ao finguelas, para que a nota fosse apanhada e entregue ao seu legítimo dono. Tudo parecia acabar em bem. O senhor agradeceu – afinal achado não é roubado -, arriscou por dizer.
Faziam-se já os trocos, quando o das litrosas reparou que a criança que estava no carrinho continuava entretida a esfanicar… uma nota de 20€! Quis arrancar-lha, mas a criança debutou num berreiro e não cedeu. Então o pai, de novo a estoirar por vermelhidões, muniu-se de um chupa que arrancou da algibeira e a criança condescendeu. Mas agora ficava ele ali com um ananás para descascar. O barbeiro de Napoleão para a frente da batalha! Como é que ia resolver a questão em distribuir o quinhão!?… Ainda assim, aquilo estava mais amarrotado do que roto. Tinha ali um pequeno rasgão de uns dois ou três centímetros, exactamente a meio, onde a nota estaria mais fragilizada.
Era a minha vez. Avancei por uma tirada salomónica. Pois que a nota já estava meia rasgada, bom remédio, dividia-se ao meio, ficava a coisa liquidada. As bestas iam-me sugando. Não percebi nada daquele fel, estavam os dois capazes de me desmoleculizar. Homens essa!, era o que mais faltava! Eu só tinha querido ajudar, havia ali testemunhas.
Mirei à volta, todos me olhavam com compaixão. Ora, ora! Pobres e ingratos! Pedi licença e passei os meus dois artigos. Paguei e andei. Queria lá eu saber da nota, nada tinha que ver comigo, que se fodesse a puta da nota (danasse o raio da nota)! A bem dizer, fiquei com pena de não saber o desfecho! Logo me informava.
O segurança que ali estava fora meu aluno, e eu até tinha o contacto do Eugénio, havia de lhe ligar, por curiosidades.Além disso, estava com alguma pressa, tinha combinado fazer contas com o Américo, que me andou lá a tratar de uns rancalhos secos e arrancar umas daninhas no jardim. Fui-me dali.
Lá estava ele, a rir, como habitualmente. Perguntei-lhe, como sempre fazia, Estás a rir de quê, Mérico? Ele ria ainda mais, sem dilucidar as razões. Botou as beiças a uma média, virou-a de trago. Foi à segunda, fez-lhe outro tanto. Tive de abreviar a coisa. Vamos então a contas, amigo. Oitenta euros, certo? E rapei das notas, dobradas ao meio. Aqui estão. O imbecil continuava a rir, desta vez parecia mais nervosa, a risa. Ali engonhou, queria dizer tá, tá, mas não lhe chegava a língua.
Ainda atrapalhado, por fim, lá disse que só estavam sessenta euros: três notas de vinte. E espremia-as, como crendo que alguma delas estivesse plasmada com a outra em falta. Mas nada, eram três, as notas, não mais. Eu tinha a certeza de que tinha levantado oitenta euros, à entrada no Hiper, antes da Odisseia! Depois disso, tinha pago com cartão.
Filho da puta do Caixa Automático, que se enganou no conto das notas, o grande cabrão!