Crise no SNS agrava-se com escalas vazias, demissão de diretor clínico em Aveiro e sobrecarga extrema de profissionais em Vila Franca de Xira
A crise nos recursos humanos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) conheceu esta quarta-feira novos episódios particularmente graves, com impacto direto no funcionamento das urgências hospitalares. O Hospital Infante D. Pedro, em Aveiro, está sem médicos suficientes para garantir a urgência de Ginecologia e Obstetrícia, o que levou à demissão do diretor do serviço. Em paralelo, no Hospital de Vila Franca de Xira, a falta de enfermeiros obrigou os profissionais do turno da noite a prolongarem o horário pela manhã, para assegurar os cuidados mínimos à população.
Estes casos dramáticos revelam a fragilidade crescente do SNS, que enfrenta um verão particularmente desafiante, com profissionais à beira do esgotamento e limites legais de horas extraordinárias já ultrapassados por muitos.
Demissão em Aveiro: urgência de Obstetrícia sem médicos
A situação mais crítica ocorreu em Aveiro, onde o diretor do serviço de Ginecologia e Obstetrícia apresentou a sua demissão. A decisão surgiu na sequência das dificuldades em garantir a continuidade do serviço de urgência durante o mês de julho, devido à escassez de médicos disponíveis para preencher as escalas.
“O Hospital de Aveiro, neste momento, tem 20 especialistas, dos quais só 11 fazem urgência — e desses 11, apenas oito estão disponíveis para turnos noturnos”, denuncia José Carlos Almeida, do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). A escassez de profissionais disponíveis tem resultado em escalas completamente vazias. De acordo com o que a SIC apurou, o mapa de urgências ginecológicas e obstétricas para os próximos dias está em branco até domingo, e sem cobertura em mais oito dias até ao final do mês.

O Conselho de Administração do hospital admite tratar-se de uma situação “extremamente gravosa” e refere uma “recusa total” dos especialistas em realizar mais horas extraordinárias. Esta recusa não decorre de falta de compromisso, mas sim do cumprimento do limite legal de 150 horas extraordinárias anuais, já atingido ou ultrapassado pela maioria dos profissionais.
A falta de atratividade do SNS para os chamados “tarefeiros” — médicos contratados para suprir lacunas pontuais — agrava ainda mais o cenário. “O salário não compensa o volume de trabalho e a responsabilidade. Muitos médicos deixam mesmo de fazer urgências”, acrescenta José Carlos Almeida.
Como resposta à escassez de ginecologistas-obstetras, o Governo tem estudado alternativas, como o alargamento das competências de enfermeiros especialistas em saúde materna. Projetos-piloto nesse sentido estão em preparação, mas a sua implementação é ainda incerta e insuficiente para colmatar as falhas imediatas.
Solidariedade em Vila Franca de Xira: enfermeiros prolongam turno para manter urgência a funcionar
Em Vila Franca de Xira, a situação vivida esta quarta-feira foi igualmente alarmante. A passagem de turno das 8h00 expôs a falta de enfermeiros na urgência geral, deixando o serviço à beira do colapso. Perante a ausência de reforços, os enfermeiros que terminavam o turno noturno decidiram voluntariamente permanecer em serviço, garantindo a continuidade da assistência aos doentes.
“As escalas estavam muito abaixo do necessário para assegurar cuidados com segurança. Num ato de total solidariedade com a população e com os colegas, os enfermeiros do turno da noite continuaram a trabalhar na manhã seguinte”, relatou Marco Aniceto, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.
Apesar do gesto altruísta, o impacto foi imediato: várias ambulâncias ficaram retidas à porta do hospital, com doentes aguardando lugar nas urgências, deitados em macas dos bombeiros. O cenário, cada vez mais comum em unidades hospitalares por todo o país, representa um risco acrescido para os utentes e um desgaste extremo para os profissionais.
A administração hospitalar admite a dificuldade em garantir os recursos necessários e afirmou que está a mobilizar enfermeiros de outros serviços para reforçar temporariamente a urgência geral. No entanto, com o período de férias a aproximar-se, cresce o receio de que esta medida paliativa não seja suficiente para evitar novos episódios de rutura.
Limites ultrapassados e um verão crítico pela frente
Os casos de Aveiro e Vila Franca de Xira não são isolados, mas sim sintomáticos de uma crise sistémica. Os profissionais de saúde denunciam há anos o excesso de carga horária, os baixos salários e a desvalorização progressiva da carreira no SNS. Com o limite legal de 150 horas extraordinárias por ano já atingido por muitos, os hospitais enfrentam agora um verão de escalas por preencher, aumento previsível da procura e escassez de soluções à vista.
A situação é agravada pela dificuldade crescente em contratar médicos e enfermeiros para o setor público. A maioria dos profissionais opta por trabalhar no setor privado ou emigrar, onde encontram melhores condições laborais e remunerações mais justas.
Neste mesmo dia, o Parlamento aprovou por unanimidade a audição da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, para esclarecer casos mediáticos recentes, como as mortes associadas a atrasos no INEM e os pagamentos a médicos dermatologistas no Hospital de Santa Maria. A expectativa é que o Governo apresente medidas concretas para travar o colapso das urgências e recuperar a confiança no SNS.