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Madeleine McCann: Vestígios do Absurdo

Diz-se que há silêncios mais eloquentes do que discursos. Mas poucos atingem a eloquência granulosa de um terreno escavado pela polícia, dezassete anos depois de um crime. A pá mecânica avança como se tivesse lido Wittgenstein ao contrário — em vez de procurar o significado das palavras, cava para encontrar o silêncio entre elas.

Durante dias, o Algarve transformou-se numa versão orwelliana de um episódio esquecido da Rua Sésamo, onde em vez de letras e números se procuravam ossos, lágrimas secas e fantasmas com passaporte britânico. A Polícia Judiciária, braço escavador do metafísico, uniu-se à congénere alemã, que chegou armada com mapas, tecnologia e uma esperança que, mesmo nos manuais da alquimia emocional de Heinrich Khunrath, já teria sido classificada como ilusória.

E encontraram. Ou melhor: desenterraram.

Uma lista. Dez peças. Um inventário arqueológico do disparate, digno de constar nos anais do Museu da Realidade Redundante:

1. Um telemóvel Nokia 3310 com bateria a 89%, a tocar um hino religioso dos Testemunhas de Jeová de Olhão.

2. Três cabeças de bonecas feitas à mão, com cabelo humano, etiquetadas “Isabelinha”, “Fátima” e “Juíza de Instrução”.

3. Uma edição rasgada do “Tratado do Músculo Abdominais”, de um obscuro culturista açoriano que defendeu a teoria do crime intercostal.

4. Um crucifixo feito de esparguete seco, com vestígios de molho de tomate com data de validade de 2006.

5. Um álbum de fotografias em que todas as imagens foram rasuradas com marcador preto, excepto as das sombras.

6. Um par de algemas cor-de-rosa, inscritas com a frase “Sou tua, mas com mandato.”

7. Uma escova de dentes com cerdas de cacto, perfeitamente intacta, colocada ao lado de um frasco vazio de “óleo essencial de dúvida”.

8. Um urinol em cerâmica com a inscrição “Público vs Privado – 2007”.

9. Uma gravação em cassete VHS intitulada “Conferência de Imprensa sobre Nada”, protagonizada por um homem que parece ser ex-ministro, mas com o rosto desfocado por interferência divina.

10. Um osso. Não humano. Não animal. Um osso “indefinido”, segundo fontes próximas da metafísica forense.

E ainda:

11. Doze euros, em notas.

12. Um dente de leite.

Cada objecto é um grito silencioso, uma metáfora enterrada com zelo administrativo. As televisões filmam, os peritos comentam, e a areia volta ao seu lugar como quem diz: “Nada a ver aqui, mas obrigado pela visita.” A justiça, nesse teatro de areia fina, dança um fado disfarçado de concerto barroco — onde o oboé é um detector de metais e o maestro está de férias desde 2013.

O absurdo disto tudo não está na busca, mas na certeza com que ela é conduzida. Porque o que se procura, há muito, não é a verdade — é a aparência meticulosa da tentativa. A encenação do zelo. Como se cavar fosse equivalente a julgar. Como se a terra, por compressão e vergonha, acabasse por confessar.

E neste ponto, inevitável, emerge o nome que paira nos bastidores da nossa tragicomédia nacional: o “Palito”. Sim, ele mesmo — falecido, foragido, herói acidental, santo padroeiro dos becos sem saída. Se há alguém com perícia para detectar o invisível, farejar o delírio policial entre raízes e esquecimento, é ele. Contratem-no. Dêem-lhe uma pá, um mapa rabiscado, e a bênção das autoridades. Pelo menos, ao contrário das escavações actuais, ele encontrará alguma coisa. Nem que seja a si próprio.

Ou então não. E nesse caso, tudo continuará exactamente como está: com a areia meticulosamente revolvida, e a verdade sentada a rir numa esplanada qualquer, à sombra da impunidade.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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