Enquanto o Presidente da República apontou vicissitudes no sistema de designação dos juízes do Tribunal Constitucional, apesar de considerar que aquele órgão judicial tem feito um “constante reforço” para minimizá-las, o presidente do Tribunal Constitucional alertou que a “intensificação da exposição” dos casos judiciais portugueses esconde, algumas vezes, “tentativas de pressionar os tribunais no sentido de decidir em certo sentido”.
Estas afirmações foram proferidas na sessão de abertura da conferência internacional comemorativa dos 40 anos do Tribunal Constitucional, que decorre até sexta-feira na Academia das Ciências de Lisboa.
Marcelo Rebelo de Sousa aludiu ao atual processo de revisão constitucional, em curso na Assembleia da República, para assinalar que o Presidente da República não tem poder de iniciativa nesse processo.
“Neste quadro, dita o bom senso institucional que se abstenha de formular pistas de alteração constitucional ou legal num domínio tão sensível. Antecessores meus assim o fizeram, mas não sigo esse caminho”, frisou.
Apesar disso, Marcelo Rebelo de Sousa salientou que “nada impede que o Presidente da República evoque algumas das principais dificuldades e sucessos” do Tribunal Constitucional nos seus quarenta anos de história.
Elencando assim dez “dificuldades antigas ou recentes“, Marcelo Rebelo de Sousa destacou o “sistema da designação dos juízes conselheiros, suas vicissitudes, seus compassos de espera, sua compaginação de linhas de força estáveis com as realidades das conjunturas”.
Este alerta surge numa altura em que dois juízes conselheiros do Tribunal Constitucional, Pedro Machete e Lino Ribeiro, mantêm-se em funções, já tendo cumprido o seu mandato de nove anos, não tendo sido ainda substituídos pelo próprio tribunal através do modelo de cooptação, conforme prevê a lei.
Entre as dez dificuldades que enumerou, Marcelo Rebelo de Sousa apontou ainda “a ligação entre a fiscalização sucessiva concreta e abstrata, e a ausência de recurso de amparo, tantas vezes reclamado para reforçar a proteção dos direitos fundamentais“, numa altura em que o PS e PSD já se opuseram, em sede de revisão constitucional, à possibilidade de os cidadãos recorrerem ao recurso de amparo “por violação de direitos, liberdades e garantias”.
Por outro lado, o chefe de Estado sublinhou também a dificuldade relativa “às controvérsias recorrentes ou intermitentes em áreas como a unidade do Estado e os regimes autonómicos, a descentralização política e administrativa, o alcance e os limites dos estados de exceção, os contornos do regime económico em geral e em particular em situações críticas”.
Para Marcelo Rebelo de Sousa, o Tribunal Constitucional tem feito um “constante esforço para minimizar as vicissitudes das renovações de titulares, as atempadas e as retardadas, e de gerir a designação dos cooptados“.
Depois de ter elencado estes sucessos e dificuldades, Marcelo Rebelo de Sousa considerou que, passados quarenta anos, “é claramente maioritário”; o entendimento de que o Tribunal Constitucional “tem singrado, reforçado o seu protagonismo, resistido às dúvidas ou suspeições de oscilação nos equilíbrios doutrinais, ideológicos e políticos”.
O Presidente da República considerou que o Tribunal Constitucional é credor da “gratidão jurídica, constitucional e cívica” do país, apesar de reconhecer que essa gratidão não é “incondicional, porque há sempre muito a aprender e muito caminho a andar para todos os órgãos de soberania, e porque nada nem ninguém é perfeito em qualquer tempo ou lugar”
Alerta para pressões sobre tribunais
Por seu turno, o presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, alertou esta quinta- feira, que a “intensificação da exposição” dos casos judiciais portugueses esconde, algumas vezes, “tentativas de pressionar os tribunais no sentido de decidir em certo sentido”, salientando que, nos últimos tempos, se tem assistido “à intensificação da exposição das jurisdições constitucionais à opinião pública”.
Caupers afirmou que “os casos mais relevantes pendentes nos tribunais portugueses, incluindo o Tribunal Constitucional, são abundantemente comentados, nos meios de comunicação e nas redes sociais, ainda antes de serem conhecidos”, embora sem apontar situações concretas.
Para o presidente do Tribunal Constitucional, esses comentários são feitos “por quem, pouco ou nada conhecendo das questões envolvidas – frequentemente muito delicadas -, nem por isso se abstém de emitir juízos precipitados e mal fundados”.
“Se umas vezes o desconhecimento é compreensível e demanda um esforço mais intenso nos tribunais no sentido de explicar melhor os seus mecanismos decisórios, outras vezes disfarça mal tentativas de pressionar os tribunais no sentido de decidir em certo sentido“, alertou.
João Caupers considerou que “não parece possível reverter esta situação, pelo que haverá que ponderar a melhor forma de lhe fazer face, sem afetar a reserva da atividade jurisdicional e a tranquilidade indispensável à ponderação judicial“.
Este aviso de João Caupers foi feito num discurso em que indicou que estão a ocorrer “muitas mudanças” no mundo da justiça constitucional e no qual se referiu à questão dos metadados.
Entre as várias mudanças que identificou, o presidente do Tribunal Constitucional abordou designadamente o problema do “equilíbrio entre os valores da liberdade e da segurança”, considerando que, depois de a implantação da democracia ter tornado a “defesa das liberdades” no “bem mais precioso”, está-se agora a assistir a uma alteração nessa “hierarquia de valores”.
Transformações na justiça
João Caupers salientou que “as transformações que o mundo conheceu nos últimos anos”, designadamente devido a “fenómenos como a globalização e o terrorismo”, fizeram acentuar “pulsões securitárias“.
“O valor da segurança foi ganhando peso, o medo – intensificado devido ao impacto da pandemia de covid-19 – foi acentuando as pulsões securitárias, incrementando restrições às liberdades até há pouco tidas como inaceitáveis e agora consideradas inevitáveis”, vincou.
Segundo o presidente do Tribunal Constitucional, “não foi apenas a preocupação com a segurança, no sentido mais estrito desta, que pôs em causa a liberdade: somou-se-lhe a normalização da devassa da privacidade dos cidadãos, também facilitada pelas medidas de combate à pandemia, sem a qual não há liberdade que resista“.
Revisão da lei dos metadados
Neste ponto, João Caupers referiu-se à chamada lei dos metadados, que está atualmente a ser revista pelo parlamento, depois de, em abril de 2022, o Tribunal Constitucional ter declarado algumas das suas normas inconstitucionais.
“A acumulação de dados pessoais sobre os cidadãos, com alegado fundamento na defesa destes, dramatizou o respetivo acesso, situação que se encontra refletida na controvérsia que grassa na Europa e nas suas instituições sobre os chamados metadados”, frisou.
O presidente do TC referiu-se ainda a uma decisão recente do Tribunal Constitucional alemão, que declarou inconstitucional a utilização, pelas forças policiais e de segurança, de algoritmos preditivos, que possibilitavam “o estabelecimento de perfis de possíveis culpados ainda antes de qualquer crime ser cometido“.
“Percebe-se que um futuro ameaçador já nos bate à porta. Mas a decisão do prestigiado tribunal também demonstra que se pode e deve lutar contra ele.
As jurisdições constitucionais e também o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) terão, acredito, um relevante papel na resolução deste grave problema“, disse.
Caupers considerou assim que “o futuro das jurisdições constitucionais se apresenta complexo, problemático e desafiador“.
“Para lhe fazer face, estas irão ter de se reinventar. Saberão fazê-lo? Poderão fazê-lo? Quererão fazê-lo?” , questionou.