… a deliberação foi célere e de novo unânime: carregar tudo no pobre iaque, não esperar um segundo, não arrumar nada, rapidamente partir em direcção à camioneta aos trambolhões, esbaforidos, sem olhar para trás, o ouvido temendo o troar de galopes de má memória!
Como todos os viajantes ou turistas, também eu senti medo em algumas das minhas viagens. Já contei a história do desastre que podia ter inviabilizado o Raide Macau Lisboa, agora vou contar o que aconteceu numa caminhada a cerca de cinquenta quilómetros de Lhassa, no Tibete.
“Nos primeiros passos no hotel, em Lhasa, havia uns degraus a subir, aí percebi! ups! respirar!!! Mais tarde, em Timor, fiz mergulho, e a primeira vez que desci no mar com a parafernália toda esqueci-me de respirar… claro! Assim que me faltou o ar e dei um respiro fundo e percebi que conseguia viver debaixo de água, foi um mundo que abriu. Em Lhasa foi como voar… o corpo é mais leve mas mais pesado… É como mergulhar!”
Assim decifrou Violeta, vinte anos depois, o embate de quem aterra numa das cidades mais misteriosas do planeta!
Todos sentíramos o mesmo: uma calma simultaneamente branda e áspera, etérea e espessa, atraente e assustadora. Pouco oxigénio, silêncio (hoje em dia talvez perdido), linguajar desconhecido, monótonas preces distantes. As montanhas que rodeiam a cidade lembram-nos que estamos a mais de 3400 metros acima do nível do mar, embora o sol escaldasse!
São inúmeros os lugares sagrados em Lhassa, não adiantando andar de templo em templo, comentando os peregrinos de roupa garrida bordada a ouro que se espojam e se levantam de mãos em oração ou retinem pequenos guizos em torno de tubos cilíndricos, as janelas das casas enfeitadas com pestanas de tecido e candeeiros com lâmpadas que se acotovelam, enquanto fumo se liberta de pequenos altares em forma de campânula branca. Basta sorver a atmosfera mística que emana de cada canto e que duplica altitude geográfica!
(Sim, tenho de falar do Mosteiro de Sera, dezenas de figuras em vermelho escuro, umas sentadas que ouvem atentamente, outras em pé que, defendendo as suas opiniões, lançam perguntas pontuadas com palmas bem audíveis… mas isso fica para outra altura, quando lembrar Padre Jesuíta António de Andrade e a sua visita, no séc. XVII, aos reis do Tibete).
A carrinha era branca debruada com pequenas listas e triângulos amarelos, azuis e encarnados, rodas altas e cabine estreita, quase escondia um pequeno porta-bagagens na capota, onde mal cabia uma bicicleta e um caixote. Fomo-nos acomodando calmamente, sendo o grupo composto por um casal idoso japonês, cada um com seu pequeno chapéu redondo de abas largas e bengala de montanha pontiaguda, Bob, um francês de meia idade e barriga proeminente, acompanhado de dois jovens com ar enjoado, como se desejassem estar longe daquela imensidão, talvez na discoteca com os amigos, e uma rapariga espanhola que vinha confirmar “se os socalcos do Pequeno Tibete em Espanha, nas Alpujarras, são mesmo parecidos com o original”. Para além do guia chinês que nos acompanhava.
Recostado num banco que rangia em cada solavanco, perdi-me em pensamentos enlevados pelas sinuosas estradas poeirentas, como se de um filme se tratasse, nos ouvidos auscultadores com faixas de álbuns escolhidos, já companheiros de outras divagações. Os sons musicais assumem estatutos personalizados para cada sujeito, preparam-nos ou mesmo transferem-nos para estados psicológicos específicos… estava preparado para a jornada! Quem sofreu o baptismo da solidão em viagem não consegue evitá-lo.
(De novo a música: dizem que o vinil está a voltar, há quem descubra ou de novo experimente a sensação do objecto físico, do tempo que se perdia ao virar o disco, mesmo da humanização dos riscos que o digital afastou. Compreendo, vivi e ainda aprecio tudo isso, mas tenho prazer maior em saltar de faixa para faixa, de agora reviver os anos 70, depois sons actuais, voltar aos 60 – não esqueço o prazer em ter descoberto os Beatles com o Fortunato, meu amigo de tantos achados adolescentes – ou avançar duas décadas, de imediato, sem procurar o disco de vinil ou o CD na prateleira, apenas com um clique voar pelo passado e descobrir o futuro, que Spotify e quejandos proporcionam).
Almoçámos em Quxu, pequena vila nas margens do rio Lhasa, onde os peixes são minúsculos por falta de oxigénio nas águas. Daí a nossa refeição ter constado, mais uma vez, de momos de iaque e sopa de alho…
A visita ao lugar onde a vida se reflete no Lago Kongmu Co, adjacente ao enorme Lago Yamdrok, com mais de 72 quilómetros de extensão, estava a dois dias e uma noite a pé entre vales e montanhas, subidas e descidas atravessando locais isolados que ora nos maravilham ora criam alguma apreensão.
No Hotel Gyantse, edifício de dois andares que se estendia em fachadas de vermelho escuro e creme diante de um largo passeio onde passámos a noite, tudo foi tratado conforme o guia previra.
Ainda a bruma da madrugada envolvia a fortaleza construída no século XIV, e que viria a acolher uma guarnição inglesa, quando partimos no autocarro para Nagarge, onde carregámos os mantimentos num vistoso e felpudo iaque, que nos auxiliaria a caminho das fraldas da montanha Tonang, onde iríamos acampar junto ao Kongmu Co, com os 7141 metros das Nojin Kangtsang ao fundo.
Fomos largando as tendinhas cobertas de pano vermelho escuro, onde taças e tacinhas, pequenas estatuetas e diversos ornamentos atraíam turistas, de lenço na boca, para se protegerem dos escapes fumarentos e do forte vento que também fustigava milhares de pequenas e coloridas bandeiras em Passes Karo, a mais de 4000 metros de altitude. A discussão dos preços era abafada pelas rajadas de um vento frio e arenoso que fazia tilintar as etéreas malgas tibetanas, muitas vezes utilizadas como instrumentos musicais, tudo enrolado em sons de motores de automóveis e camionetas, que a cada minuto ia imergindo num silêncio que, finalmente, combinava com o lago turquesa que se alargava diante dos nossos olhos.
Não seguíamos qualquer estrada, atalhávamos vagarosamente entre oceanos de pequenas flores amarelas e brancas, como se passeássemos num imenso jardim. Por vezes, entre pequenas colinas, surgia ao longe a estrada sinuosa que ultrapassava Kamba La, por onde deslizavam dezenas de viaturas que ligavam Lhassa a Gyantse.
A trupe seguia em fila, num ritmo lento e cadenciado que se cruzava com as passadas do animal e os clips da máquina fotográfica de Violeta, enquanto Bob filmava a nossa crescente fadiga, a pesar dos poucos e leves declives a vencer (caminhar no ar rarefeito cansa mais). Tudo estava a correr sem sobressaltos, os jovens franceses trocavam breves apreciações com o guia, enquanto os japoneses, munidos das suas bengalas de montanha, projectavam sombras que se multiplicavam com a do iaque, criando silhuetas que pulavam entre a colorida vegetação. O sol estava morno, indolente, e a rota abrigava do vento.
Estávamos perante um dos lagos sagrados do Tibete, margens salpicadas de pequenos templos budistas, onde monges lançam preces hipnóticas que pairam entre as montanhas. Numa pequena colina, encontrámos Samding que, ao longe, parece um castelo, um dos únicos mosteiros tibetanos que aceita homens e mulheres. A visita foi rápida, pois monges e monjas preparavam, atarefados, o grande ritual budista de Maio, quando se celebra a sabedoria de Yamãntaka.
Já quando compridos raios de sol pintavam a neve mais resistente como delicadas aguarelas, num silêncio profundo e constante montámos as tendas, como se não ousássemos perturbar o sagrado sossego. De toda aquela envolvência nascia uma atmosfera que pesava nos corpos fatigados, empurrando a realidade e branqueando a mente. O vento acalmara como se quisesse colaborar com a branda plenitude do local.
Sentia-me repousado, confiante numa noite sem sobressaltos, quando nos apercebemos, bem ao longe, de um troar que lembrava cavalgadas nos filmes do Oeste americano!
Duas raparigas e dois rapazes, com largos chapéus e faces rosadas, simpáticas, montados em cavalitos de onde pendiam garridas sacolas, aproximaram-se do acampamento e, num quase indecifrável inglês, anunciaram que iriam partilhar bebidas e comida com os “amigos estrangeiros”. Sem dar tempo a qualquer réplica da nossa parte, desmontaram e instalaram-se em torno do fogão a gás, onde preparávamos um estofado de carneiro, que guarneceríamos com chouriço e carnes secas variadas.
À cintura pendiam pequenas espingardas fabrico chinês.
Vestiam roupas ocidentais, elas com duas tranças decoradas com argolas que se estendiam até aos casacos de pele de carneiro, eles de calças grossas e camisolas de lã com riscas horizontais. Perante a surpresa geral pela inesperada aparição, afirmaram ser costume conviverem com turistas que ali acampavam e que nos dariam a conhecer petiscos locais. A conversa ia sendo traduzida pelo guia chinês, uma vez que o condutor do iaque só falava tibetano. Riam-se muito, brindavam com frequência a tudo e a nada, até dançaram ao ritmo de um pequeno tambor. Tentavam criar ambiente agradável, tudo parecia natural e seguro, mas a alteração da quietude que o lugar pedia não agradou a quase ninguém, apenas aos jovens franceses que assim encontravam alguma animação.
Comecei a ficar seriamente preocupado quando o efeito do vinho destilado de cevada tornou um dos visitantes mais agressivo, insistindo de forma muito veemente a que os acompanhássemos a uma quinta perto (“my farm very nice”), no que foi apoiado pelos parceiros, com as patuscas meninas a derramarem olhares prometedores.
Felizmente, todo o grupo me acompanhava na rejeição de tal hipótese, mas as justificações não convenciam e a persistência na recusa irritava cada vez mais os já desesperados cavaleiros, que insistiam exaltados com o guia. O causador da desavença cambaleava, garrafa na mão, sem frio entre as fraldas da camisa esvoaçante, agora que o vento participava na cena.
“Fiquem aqui, nós vamos carregar mais comida, bebida já chega, são só uns minutos, vamos trazer muitas surpresas”, palavras que depois de traduzidas entendemos como mera desculpa para chamarem mais capangas, eu já assim os avaliava, prontos a roubar ou sabe-se lá mais o quê…
Mal desapareceram na noite, as duas raparigas e um dos rapazes, deixando o bêbado a roncar no chão, a deliberação foi célere e de novo unânime: carregar tudo no pobre iaque, não esperar um segundo, não arrumar nada, rapidamente partir em direcção à camioneta aos trambolhões, esbaforidos, sem olhar para trás, o ouvido temendo o troar de galopes de má memória!
Pernas como chumbo e fortes tonturas contribuíram para o silêncio que nos acompanhou até ao Hotel Gyantse!