Combateu por Goa, Índia, mas o Estado português o esqueceu
Miguel é um exemplo de resiliência. Combateu em Goa, quando era um jovem soldado cheio de sonhos, integrando o batalhão de caçadores da Índia, em 1954, após a ocupação dos territórios de Dadrá e Nagar-Avelli, nesse verão, mas o estado português o esqueceu. Ficou paraplégico aos 33 anos, num acidente de trabalho em França, mas prosseguiu a sua vida de gestor, com a mesma lucidez, firmeza de princípios e sociabilidade que o caracterizam.
Goa, Damão e Dio, importantes territórios portugueses, na Índia, caíram em 1961, após a rendição das tropas portuguesas, perante uma disparidade de forças (50 mil da União Indiana contra cerca de 7 mil por Portugal). Os ventos de mudança já sopravam mais fortes, três anos depois da independência da Grã-Bretanha, quando em 1950, e na sequência da saída dos franceses da península, Nehru exigiu que Portugal lhes seguisse o exemplo quanto aos três distritos do Estado Português da Índia, clamando que os mesmos representavam, “uma verruga no território indiano que deteriorava o seu belo rosto”.
Na aldeia da Murgeira onde nasceu, Miguel Duarte Carvalho, 91 anos, afável diz:” Fui em 1954, logo após a ocupação de Dadrá e Nagar-Aveli. Durante o período em que estive em Goa, até Novembro de 1955, já era visível a superioridade das forças na Índia”.
O seu batalhão, o primeiro a ir para a Índia após as ocupações daqueles pequenos territórios entre 28 de julho e 10 agosto de 1954, ficou esquecido do estado português. A lei dos combatentes 46/2020, que reformulou uma outra de 2009, continua a omitir esse período. O Estado português considera combatentes: “ Os ex-militares que se encontravam em Goa, Damão, Diu, bem como em Dadrá e Nagar-Aveli, aquando da integração destes territórios na União Indiana.
A historiografia sobre o período que antecedeu a entrega de Goa, em 1961, é também muito escassa. Para além da constituição do “batalhão India” no diário da República, é nos jornais da época, nacionais e estrangeiros, que se consegue recolher a pouca informação sobre esse espaço de tempo, em que já havia movimentações partidárias indianas, rumores do conversas diplomáticas e episódios de descontentamento popular dos locais.
A história de Miguel, na fase de soldado combatente e a a sua história pessoal, funde-se com a vida da sua companheira, “uma guerreira”, com quem casou em 1958. Belisanda Filipe Carvalho, 88 anos, que dedicou-lhe um poema à sua chegada, da Índia para Lisboa, no cais de Alcântara, no “Quanza”, a 14 de Dezembro, de 1955:
Meus amigos camaradas dessa Índia do passado
Que tenho eu para vos dizer ?
Que perdemos a batalha dum jogo mal fadado
Que não podemos vencer ,
Resta a recordação dos nossos passos perdidos
Em terras de tanta glória
Mas dói dói o coração porque só fomos vencidos
Pelos ventos da história .
Tudo voltou ao começo quando Portugal era um pequenino jardim
Agora sou eu que te peço o pátria da minha era ,
Não morras dentro de mim .
Em quatro séculos de história
Foste um braço de nação .
Portugal no Oriente
Agora és só memória de quem sempre deu lição
Aos povos de outra gente .
Oh Velha Goa e Pangim terras de Albuquerque e Gama
Deixa que te cante assim como quem sente e ama
Batalhão de Caçadores, na Índia não haverá pelo menos outro igual
Mas entre prados e flores em Goa não morrerá a Alma de Portugal
Mulher delicada e perspicaz, Belisanda, uma poetisa que gosta de declamar, cantar e pintar, leva-nos a uma compreensão de uma resiliência, conjunta, quando nos conta: “quando saí do hospital e soube que o Miguel não voltaria a andar, caminhei sem parar, desesperada, e parei, a chorar, em frente de uma montra de joias sem as ver, sequer….O mundo acabara de desabar e nós tínhamos uma filha criança para educar””. A senhora francesa que a observava por dentro do vidro da montra, foi perguntar-lhe o que se passava. Daqui nasceu uma nova relação de amizade e Miguel arranjou emprego como responsável da gestão dessa loja. A viverem em Pas-de-Calais (França), Miguel tinha, muitas vezes, porque sem outros meios de deslocação, de percorrer três quilómetros em cadeira de rodas, sobre o gelo, para chegar ao seu trabalho. Essa força, conjunta, fez com que nunca cruzassem os braços e conquistassem a simpatia de muitas pessoas, cuja amizade perdura.
O soldado Miguel Carvalho, tinha 22 anos e pertencia ao batalhão de Caçadores número 5, sob o comando de Eurico Cazais Ribeiro que se ofereceu para embarcar para a Índia, na sequência da ocupação dos enclaves portugueses Dadrá e Nagar-Aveli, entre 28 de Julho e 10 de Agosto de 1954, “foi o primeiro a ir para a Índia, por causa da do receio de outras ocupações. Outros batalhões se seguiram. Depois. até à ocupação final, nomeadamente logo em Setembro de 1954, com a partida do o batalhão de Mafra, “Vasco da Gama”, comandado por França Borges. Foi nessa ocupação que morreram o polícia Aniceto do Rosário e o seu ajudante.
“Ouvia-se falar de invasão. Nós, soldados, não tínhamos bem a noção do que era a política, mas apercebemo-nos de que algo não estava bem. Nós só tínhamos de obedecer. Era o discurso de Salazar que ouvíamos a todo o instante. Era preciso lutar pela pátria e nós sabíamos que a pátria eram também as províncias ultramarinas”. Naquele tempo falar em política era proibido. Era só o regime de Salazar. Os soldados tinham um desconhecimento grande. Éramos muito jovens e quem se negasse a defender a Pátria era morto”.
Antes de partirem para a Índia o seu batalhão começou uma preparação de defesa: “fizemos muitos treinos militares na Carregueira. Estivemos perto de um mês onde andamos dias e noites inteiras debaixo de fogo” e a Carregueira, disse, “traumatizou-nos um bocado. Passávamos muito tempo com um cantil de um litro de água que chegava a estar quente. Isso era tudo preparação para a guerra, pois íamos para um sítio que era muito quente”.
O batalhão partiu de Lisboa, em Alcântara, no navio “Moçâmedes”, em 10 de agosto de 1954 e chegou à Índia, porto de Mormugão, em 20 de Agosto de 1954. Formaram o Batalhão de Caçadores India, cuja constituição saiu no Diário do Governo I série nº 261 em decreto-lei de 22 novembro de 1954, – “Batalhão de caçadores da Índia, colocados na dependência do comando militar da Índia”.
À chegada à Índia, o batalhão aquartelou-se, primeiro, em Vasco da Gama onde após um mês, foi transferido para Velha Goa, cidade antiga, praticamente abandonada pelo povo que, por causa de uma peste bateu em retirada para Pangim, à beira-mar e onde desagua o rio Mandovi. Foi instalado no antigo convento de Santa Mónica, uma grande ruína da velha Goa do século XVII, perto da basílica do Bom Jesus onde se encontrava o tumulo de S. Francisco Xavier, a quem os soldados foram venerar. Depois ficaram aqui até ao fim (ano e meio).
Uma vez na Índia, Miguel conta que faziam treinos militares todos dos dias quer no quartel, quer na floresta. “Íamos de camionetes para perto da fronteira e estávamos lá cerca de um mês, aí era o capitão Gonçalves, comandante do batalhão. Este era uma joia de homem”. Ao contrário, o seu comandante, General Eurico Cazais Ribeiro, que morreu em 1957, era de uma rigidez que criava animosidades entre os soldados, pelos castigos que aplicava, também na Índia. Miguel recorda-se de um levantamento de rancho, porque as refeições eram carne de búfalo cozida, em condições de higiene deploráveis. Na sequência disso “arranjaram uma caixa de sardinhas”, mas, fomos avisados: “Da próxima vez que fizerem isso, comem ratos”, disse.
Miguel diz que, pelo que observavam, falava-se entre os colegas que não havia capacidade para defrontar os indianos, que “eram muitos” e “nós éramos poucos, insuficientes e tínhamos pouco material bélico. O que existia era muito antigo”.
As pessoas locais tinham desconfiança de nós. Havia movimentos populares. Havia muita pobreza e fome. Faziam fila com crianças e tudo para conseguir que déssemos comida. Os habitantes locais falavam português, mas usavam também a língua deles o “concani” .
Miguel recorda que a sua estada houve um incidente (v. fotos), onde morreram três soldados. Foi um acidente com os camiões da tropa quando iam para os exercícios de treino. Aconteceu ao fim de um ano de lá estarem. “Eram muito meus amigos. Um era da zona da Lourinhã”
Recorda que os portugueses do seu batalhão, se amparavam como uma família, pois cada um estava longe da sua. O clima era muito quente, havia falta de água e em redor muita pobreza. O que os alentava eram cartas das famílias que iam recebendo, distribuídas pelo primeiro-sargento Moura. “Quando havia correio de Portugal, mandava chamar os soldados e formar-se à porta do quartel, para chamar um por um, e entregar as cartas. Era sempre uma ansiedade. Eu escrevia muitas cartas, mas não mandava…”
Na Índia “sempre pensei que não regressava a Portugal. O medo estava sempre presente. Havia medo, sobretudo quando íamos para o treino no meio da selva, mas eu já estava habituado ao campo. Para aqueles que estavam habituados à cidade, era mais complicado”, disse, acrescentando que os militares, desde que tenham espingarda, não tem medo dos civis. “
“O medo era de um possível ataque! Nós não tínhamos capacidade, nem pensar nisso! O que éramos nós perante a grandeza da Índia!”, concluiu.