A primeira mulher cabo-verdiana gastrónoma, Maria de Lourdes Chantre, a viver em Portugal, vai lançar, aos 92 anos, um novo livro: História, Tradição e Novos Sabores da Cozinha de Cabo Verde. A obra, da editora Rosa de Porcelana, será apresentada em julho.
A editora refere que é uma obra emblemática sobre a gastronomia cabo-verdiana, a partir de uma perspetiva antropológica e cultural. Segundo a escritora Dina Salústio, a obra “ultrapassa a dimensão de um grande e belo livro de cozinha para ser um livro que, em subtítulo, poder-se-ia chamar: Cabo Verde uma viagem gastronómica pela história dos alimentos”
“É um livro de culinária produzido por uma intelectual que nas suas paixões literárias inscreve um António Aurélio Gonçalves, um Jorge Barbosa, dois grandes escritores, amigos e gourmets, de quem usa particulares preferências para nos seduzir.” E acrescenta “História, Tradição e Novos Sabores da Cozinha de Cabo Verde” pretende ser um livro/objeto de qualidade estética e conteudística”.
A autora, lúcida e autónoma, que vive em Portugal há mais de 40 anos, contemporânea da portuguesa Maria de Lourdes Modesto, mistura e casa os diversos alimentos. Através deles, faz emergir também a multiculturalidade, mostrando que o ato de comer revela identidades culturais e oferece informações sobre a organização e a estrutura da sociedade.
O estudo dos ingredientes empregados reporta a História, as invasões sofridas, a colonização, a cultura praticada, o clima, o solo, enfim revela as memórias de um povo.
Ela não se limita às dimensões de um espaço grupal, mas procura sempre a amplitude de outros espaços públicos no sentido da expansão do seu saber e da divulgação deste património cabo-verdiano, procurando a sua inclusão em palestras, conferências, instituições culturais, de ensino ou de carácter profissional.
A gastrónoma ensina-nos que a amplitude do conhecimento inclui um conjunto de conceitos, regras e práticas de convivência social: preparar uma mesa para um banquete protocolar, saborear uma refeição sobre uma toalha de linho, não é o mesmo que comer num almoço buffet sobre toalhas de papel.
Maria de Lourdes Chantre usa pormenores e requintes que provocam os sentidos. Ela sabe que uma chávena de chá servido num tabuleiro forrado a “panu di terra” leva-nos a memória a indagar de um povo e que é mais do que o seu somatório físico ou espaço territorial.
Terá sido pela consciência do seu valor cultural que o governo cabo-verdiano lhe atribuiu, em 2005, a medalha de mérito de 1º grau, de reconhecimento neste domínio da cultura, em 18 de outubro.
Lourdes Chantre é uma mulher a quem não importa a idade cronológica. Ela continua vivendo o seu tempo, o nosso tempo, com a lucidez e inteligência para compreender as mudanças do mundo e adaptar-se a elas, com a consciência que todos devemos ter de que enquanto formos vivos temos o dever de dar o nosso contributo. O que fizermos será o nosso legado. Lourdes Depressa se apercebeu que era necessário aprender a dominar a informática e a navegar na internet, para evitar a infoexclusão e fê-lo.
Num olhar intimista pelos objetos que decoram a sua casa são visíveis elementos de uma vivência social e culturalmente elevadas, herança educacional de seus pais.
Pelas fotos cuidadosamente emolduradas que recordam familiares, amigos da sua convivência e personagens que passaram pelo seu quotidiano inquieto e atento, é possível verificar-se a presença de Cabo Verde e o seu contexto.
Intelectuais como Baltasar Lopes, (o escritor do romance do Chiquinho), Jorge Barbosa, Gabriel Mariano, António Carreira, Teixeira de Sousa, Manuel Ferreira, Mesquitela Lima, Nuno Miranda, são referências na sua formação educacional que como sabemos, engloba também elementos europeus, em resultado de uma génese identitária.
Nas estantes de sua casa vê-se o seu avô, oficial do exército, a receber o rei D. Manuel ou a rainha D. Amélia, ao tempo da monarquia. Ali um jantar com Baltasar Lopes em Cabo Verde. Acolá objetos minuciosos de heranças de seus ancestrais ocupam lugares específicos na sua estante de livros e de afetos.
Lourdes Chantre é também uma mulher com preocupações de liberdade e de carácter social, influência do seu pai, jornalista, fundador e diretor do jornal “Notícias de Cabo Verde”, cuja caricatura está emoldurada em lugar de destaque. Nos seus escritos e apesar do regime, o seu pai não se coibia de criticar o que considerava discriminatório, bem como veicular ventos independentistas de África. Aliás foi na Sociedade de Tipográfica e Publicidade Lda de que era proprietário, onde foi impresso o primeiro número da revista Claridade em S. Vicente.
Num editorial de 1936, altura em que se erguia a prisão do Tarrafal, o jornalista escreveu: “A crise económica, verdadeiramente esmagadora, exige que clamemos pela sua debelação. A situação da classe trabalhadora é aflitiva (…) a agricultura carece de águas e de capital (…) a exígua indústria não é amparada. E por isso se impõe a vigilância do piloto no mar encapelado das desditas da terra. O despertar de África insufla-nos a energia necessária para que o “Noticias” conserve as suas qualidades de corajoso arauto das reivindicações cabo-verdianas”.
Honrando esta herança do seu pai, Lourdes Chantre revela-se também uma pessoa empreendedora que não se fica pelo cruzar de braços: foi a primeira mulher a editar um livro de cozinha tradicional em 1979, “Cozinha de Cabo Verde”, obra que usei e abusei (por isso o meu livro (4ª edição de 2001), já está um pouco estragado do uso).
Hoje tem cinco livros publicados1 e prestado o seu saber em cursos de formação, em pedidos para cocktails ou jantares especiais: Além do livro “Cozinha de Cabo Verde” com nova edição em 1989, 1993, e 2001, é ainda autora de “111 Receitas da Cozinha Africana” (1981) da Editorial Europa América, “Comida Saudável para o coração” (1990) edição da Fundação Portuguesa de Cardiologia, “Plantas Medicinais- Recolha da Sabedoria Popular“ editada por convite do Ministério da Coordenação Económica da República de Cabo Verde para o “Prix d’Excellence de la CEDEAO – Farmacopeia Africana” e “Na Cozinha Cabo-verdiana com Ceris”(1995), edição da CERIS – Sociedade Cabo-verdiana de Cervejas.
Encontramos a sua obra catalogada nas livrarias como “literatura e cultura alimentar”. Há registos do seu trabalho em blogues e sites como no “ Musealogando”, “Praia do Bote”, “Receitas e Sabores de Cabo Verde”, na Revista Latitudes2, nos sites do Museu do Trabalho Michel Giacometti, Rede Nacional de Bibliotecas, na biblioteca Ciências Domésticas e Economia.
Conheci pessoalmente esta extraordinária mulher, em 2005, na sequência de um encontro pré-combinado num café de Lisboa Alguém me disse que havia uma gastrónoma cabo-verdiana em Lisboa. Não fazia a mínima ideia e surpreendi-me quando uma senhora de madeixa branca no cabelo se me dirigiu, como se nos conhecêssemos há muito, numa cordialidade e confiança raras nos dias em que vivemos. Admiro-a, respeito-a e considero que o seu legado deve ser estudado.
Que as doçuras de Lourdes Chantre sejam inspiradoras da criatividade e das emoções da vida, ao espírito de um dos mais importantes poetas de língua portuguesa, Fernando Pessoa, para quem “Navegar é preciso; viver não é preciso. O que é necessário é criar”.
* Maria de Lourdes Soromenho Ribeiro de Almeida –(Lourdes.chantre@netcabo.pt), gastrónoma, autora de cinco livros, agraciada pelo primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria Neves. É natural de Mindelo, ilha de S. Vicente, Cabo Verde, onde nasceu em 11-10- 1939. Filha de Manuel Ribeiro de Almeida e de Estella Soromenho Silva Ribeiro de Almeida. Viúva professor Guilherme Chantre. Tirou o Curso geral dos Liceus, cursou Secretariado e o de Correspondente em línguas estrangeiras (Inglês e Francês), bem como do Curso de Técnicas de Interação Pessoal para Assistentes de Direção (ISLA). Foi assistente do cônsul de França em S. Vicente, Cabo Verde. Em Lisboa foi Secretária de Administração na empresa Ilídio Monteiro Construções, S.A. e também secretária de direção da OIKOS – Cooperação e Desenvolvimento. Neste âmbito profissional foi Presidente do Conselho Fiscal da Associação de Secretárias Profissionais Portuguesas (1989 a 1991), instituição a que ainda está ligada. Foi a tradutora para o Concurso Internacional do Porto de Sines, integrando a equipa de trabalho da Direção Internacional da SPIE BATIGHOLLES TRAVAUX PUBLICS (Pris – Véllisy)
Lourdes Chantre é membro da Sociedade Portuguesa de Autores e membro da Sociedade de Geografia de Lisboa.