Num enredo digno de um thriller internacional, Lisboa recebe, quase em segredo, um porta-contentores cujo trajeto e intenções causaram reboliço nos corredores parlamentares e agitaram o movimento de solidariedade com a Palestina. Mas, como diz o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, após a diligente e extensa investigação das autoridades, “não se encontrou nada relacionado com armas”. Fim de história? Nem por sombras
O Misterioso Navio que Não Trazia Nada
Entra em cena o NYSTED MAERSK, um navio carregado com uma aura de suspeição, cujo nome já seria suficiente para alertar os mais distraídos. Vindo de Casablanca, após ter sido impedido de entrar em Algeciras, este “modesto” porta-contentores encontra refúgio no Porto de Lisboa. À primeira vista, nada digno de uma manchete; até que alguém se lembra de investigar as razões para a proibição de atracagem em Espanha. Afinal, o que transporta o navio que um país europeu vizinho evita como quem foge da peste? De acordo com as autoridades portuguesas, absolutamente nada de relevante. Nada de armas, nada de explosivos, nem sequer um arsenal disfarçado de carga convencional. Um navio vazio de perigos, asseguram.
Marcelo e o Governo: Os Detetives da Inocência
“Acabei de falar com o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros,” começa Marcelo, com o ar de quem acabou de resolver um mistério. Mas a certeza com que fala revela-se, afinal, um tanto ingénua. “Não se encontrou nada”, ecoa repetidamente o Presidente. Porém, num episódio que parece ser mais uma novela de segredos militares mal contados, esta declaração ganha o tom de uma comédia involuntária. Não é fácil imaginar um dos países mais minuciosos do mundo em matéria de segurança, a Espanha, a barrar um navio “sem nada”. Mas em Portugal, bastaram as garantias do manifesto e uma passagem de olhos para decretar a inocência do NYSTED MAERSK. Estaria o Governo à procura de algo sem, na verdade, querer encontrar?
Nada Hoje, Algo Amanhã?
Marcelo, numa lógica quase premonitória, minimiza as preocupações, relembrando ao país que o navio “não carregou nada aqui”. Mas, como qualquer bom argumento circular, a questão retorna, transformando-se num bumerangue crítico: e depois, quando o navio continuar a sua viagem para Tânger e, eventualmente, para Israel, será que ninguém, nesta longa cadeia de permissões, imaginou que uma escala em Lisboa fosse apenas o ensaio para um futuro carregamento bélico?
Esquerda a Questionar, Governo a Justificar
O Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português não se deram por satisfeitos com o coro de inocência e apontaram as perguntas incómodas que incomodam qualquer autoridade. Afinal, não é normal que um navio associado a um “esquema dissimulado de transporte de armamento” tenha uma receção tão cordial em Lisboa. Para os dois partidos, o carimbo de permissão português parece a senha para uma operação disfarçada. Contudo, o Governo mantém-se imperturbável e assegura que as averiguações foram exaustivas, que os contentores descarregados não continham nem uma bala de brinquedo. E quanto ao destino do navio após Lisboa? Marcelo faz um encolher de ombros diplomático e, no seu estilo sereno, remata: “Portugal, na altura devida, pode então tomar medidas.”
A Justiça Feita com os Olhos Fechados
A justiça poética aqui é profunda. Temos um Governo e um Presidente empenhados em manter as portas abertas, com a confiança de quem oferece hospitalidade a um velho amigo, mesmo sabendo que esse amigo carrega um histórico de atividades, digamos, questionáveis. O destino de um navio associado a esquemas armamentistas, ironicamente, encontra guarida na prudência portuguesa de não procurar ver demais. Afinal, o que não se vê, não se condena. Aparentemente, Lisboa é a escala perfeita para quem pretende lavar a consciência de uma carga incómoda.
Quando “Nada” É o Novo “Tudo”
O NYSTED MAERSK já deixou Lisboa, mas o debate permanece em território nacional, deixando atrás de si o rasto de uma ironia evidente: afinal, “não se encontrou nada”. Este nada com que o Governo nos tranquiliza é o tipo de vazio que pesa, que indigna e que deixa, no final, mais perguntas que respostas. Não é para menos: no espelho partido de um país que fecha os olhos ao que não quer ver, o “nada” do Presidente é, para muitos, o reflexo de um “tudo” guardado à vista de todos – menos daqueles que fingem não ver.