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O Almirante que queria ser

Acordou turvado pela sombra do trolha. Sabia-lhe a boca a constitucionalistas. O soslaio do sol batia no andaime e entrava na persiana – de fora havia homens a brochar ou a pintar. Não lhe apeteceu sequer o primeiro cigarro na cama nem o telefonema para a marinha marinha, a perguntar se havia lá um submarino socialista a tirar fotocópias da agenda do dia. Ou pior – um independente, a passear-se entre os Prazeres e as Necessidades, em cata de trunfo eleitoral. Mais pequeno que ele, um domingueiro sentado a botar pensamentos antes de globos.

Não ligou a Pedro, o Passos, era o dia 30 de Setembro. Não lhe perguntou nada, não viu mails nem mensagens, desprezou um dos seis telemóveis. Enfardou-se, pendeu as plaquinhas de lego, todas coloridas, como se fossem broches de dama vitoriana. Abriu a escotilha do T4 da Lapa e perguntou aos maçons: “Meninos, quero ser trolha, posso?”.

Os romenos, o transmontano e o bangladeshiano sorriram complacentes, sentaram-se na tábua e ficaram-lhe com os joelhos à altura do nariz. “Porquê, pá? Tens um bom emprego, nada de complicações. Isto aqui é horas a pichar, a tábua nem sempre direita, se um gajo diz que se demite o patrão não nos aumenta, manda logo vir um gajo do instituto de emprego a ganhar metade. Não faças isso”. Um deles abriu a lancheira.

Davam as oito, a transitada apupava os espertos que se metiam pela esquerda e bloqueavam os da direita prioritária. “Eu gosto de cinema. Aquelas cenas do Buster Keaton, a imagem do trabalho. Um homem começa na lavoura, nas palavras da terra, no pomarão, mas eu quero construir. Sinto-me das catedrais, dos palácios, de Belém. Posso ficar convosco”, questionou?

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Era sincero, aquilo. António, o romeno mais loiro, ainda lhe fez uma festa na cabeça e, segurando-o, muito fixo os olhos nos olhos: “Ouve, isto não é para ti. Não há água, lá em baixo. Quando caíres, cais mesmo. Não há indemnização, tens de mandar piropos ás gajas antes que os proíbam”.

“Eu sei mandar piropos”, sugeriu.

“Não, não sabes”, desiludiu-o António. Mas o sonhador insistiu. “Sei, sei. Olha este: Ó Nuno Melo, és muitaboa“.

Os do andaime não sorriram, levantaram-se, pegaram nas trinchas, nas chaves, nas cordas e nos baldes. Ontem, sem tirar da cabeça aquela manhã, apresentou-se ao serviço com uma boia, uma foice e um martelo rebelo de sousa.

Era um homem feliz.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista, autor, (pré-agricultor).

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