Sábado,Junho 21, 2025
17.4 C
Castelo Branco

- Publicidade -

O Caso das Peúgas Roubadas

Na aurora da civilização — ou talvez apenas do pequeno-almoço — surgiu a mais antiga e negligenciada forma de conflito: o roubo doméstico de meias. Não falamos aqui de furtos passionais ou de cleptomanias excêntricas. É um crime ancestral, impune e reincidente, que se perpetua nos corredores de casas pacatas, entre resmungos de adolescentes e passos descalços sobre chão frio. A ONU ignora. O Papa ainda não há e, por isso, não se pronunciou. Mas o caos alastra.

Na minha habitação — que já foi lar e agora é campo de batalha — vivem dois jovens com ADN suficiente para partilhar o mesmo número de calçado: um de vinte e dois anos, com a insolência calma de quem já sabe tudo; outro com dezassete, a viver na sua própria revolução de Outubro, mas com espinhas. Ambos praticam, com zelo militar, a arte da apropriação de meias. Eu, pai e vítima, sou simultaneamente Kremlin e Ucrânia nesta geopolítica têxtil.

As armas são simples. Um par de meias deixado com fé cristã na gaveta à noite desaparece pela manhã como se engolido por um buraco negro ou por Kafka em versão doméstica. Deixámos avisos. “NÃO!” — gritava o post-it, com a autoridade triste de um papel amarelo em protesto. Instalámos medidas dissuasoras: pilhas de

roupa organizadas segundo códigos cromáticos que fariam inveja a um desfile maoista. Nada funcionou.

E não nos adiantemos: há mais um inimigo. Chama-se Pacheco. Tem sete anos, quatro patas, e a ética de um banqueiro suíço em liquidação. Cão de porte pequeno, mas ambição larga. Especializou-se no furto singular: não pares, só unidades. A sua obra é um cubismo canino — uma meia de cada padrão, sem lógica, sem remorso, sem direito de resposta.

Foi então que decidi trair os ideais de Genebra e recorrer à globalização obscura. Encomendei cento e vinte pares de meias. Todas pretas, todas iguais, vindas da China, por um preço inferior ao de uma bica tirada por um barista vegano em Campo de Ourique. É a democratização da meia. A ditadura do igual. A Revolução Cultural da Peúga.

Hoje, os pacotes chegaram. A caixa parecia conter arte sacra. Ou munições. Os filhos abriram-na com a reverência de quem contempla um milagre de Santo Antão, mas com a desconfiança típica de quem suspeita de espionagem paterna. Distribuí, como Moisés com as tábuas da Lei: “A partir de hoje, não mais furtos. Cada um com a sua centúria.”

Mas claro… existe um problema. O ladrão de quatro patas. Pacheco.

A sua expressão manteve-se serena, imperturbável. Olhou para os novos pares como quem contempla um buffet escandinavo: abundância não inibe o apetite, estimula-o. E, esta manhã, ao sair do quarto, dei de caras com a velha tragédia: um só pé, sem par, largado no corredor. Um cadáver têxtil. Mais um.

E é aqui que reside o cerne da questão — ou o seu delírio. Porque talvez não seja sobre meias. Talvez seja sobre identidade, propriedade, ou essa ilusão moderna de que tudo nos pertence porque o comprámos. Talvez seja sobre a nossa crença estúpida de

que ordem é possível num mundo que inclui adolescentes, cães e gavetas. Talvez o problema não seja o roubo, mas a fé ingénua de que um par de meias voltará a ser um par no final do dia.

Pacheco, esse pequeno Diógenes peludo, ensina-nos, com os seus furtos unilaterais, que o mundo não tem de ser simétrico para ser funcional. E que o verdadeiro escândalo não é a meia desaparecida. É o nosso espanto perante o desaparecimento.

Agora, calço dois pés diferentes. Os filhos ainda tentam manter a simetria, com a rigidez de uma República em colapso. Mas há dias em que olho para o cão, ele para mim, e ambos compreendemos algo que nem Sun Tzu ousou escrever: na guerra da meia, vence quem aceita o absurdo.

Ou talvez eu só precise de dormir melhor.

- Publicidade -

Não perca esta e outras novidades! Subscreva a nossa newsletter e receba as notícias mais importantes da semana, nacionais e internacionais, diretamente no seu email. Fique sempre informado!

Partilhe nas redes sociais:
Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Destaques

- Publicidade -

Artigos do autor

Não está autorizado a replicar o conteúdo deste site.