Gangue: nome masculino
1. Grupo organizado de malfeitores = quadrilha
2. (Depreciativo) Grupo de pessoas com interesses comuns = malta, pessoal
In Dicionário Priberam Online
Sempre ofereci relutância e resistência em adentrar pelo mundo das séries televisivas e, mais recentemente, das que integram as platafomas de streaming digitais. Seguir episódios e temporadas trazia-me um sentimento agridoce que balançava entre uma sensação de perda de liberdade, da qual não queria abdicar, e um receio de me tornar adita ao formato. No entanto, por insistência de alguns amigos, que conhecem a minha adoração cinéfila, acabei por me render e apostar em algumas -poucas!- séries com a melhor crítica da atualidade.
A última que assisti assaltou-me de particular deslumbramento, sobretudo pela construção complexa das personagens envolvidas. Trata-se de Peaky Blinders, cuja história, inspirada em factos reais, se centra no gangue originário de Birmingham, Inglaterra, nas décadas de 20 e 30 do século passado, que obteve, devido às suas atividades pouco lícitas, um domínio económico e grande influência política no território das Midlands Ocidentais.
As vivências do grupo criminoso organizado, bem como os seus esquemas fraudulentos, sobretudo de viciação de resultados de corridas de cavalos e jogos de futebol para a obtenção de quantias avultadas para enriquecimento da quadrilha levou-me, de uma forma quase inconsciente, naquela lassidão entorpecida que antecede o sono, a discorrer sobre as muitas comparações com a atual classe política portuguesa (salvando-se as devidas exceções, a quem não assentará a carapuça).
Atentemos nas minhas inferências:
1. Ambos são grupos organizados, fechados, exclusivos e restritos, ao qual se poderá aceder apenas por três vias:
– a familiar (onde cabem parentes diretos e amigos próximos para a liderança dos cambalachos);
– a de poder e estatuto (podem incluir outras quadrilhas familiares de sucesso ou membros das altas instâncias económicas e políticas, cuja assunção de supremacia teve contornos igualmente perversos, e com os quais se podem estabelecer parcerias altamente rentáveis);
– a dos lambe-botas, classe facilmente corruptível, caracterizada pela pobreza de espírito e subserviência, que sente necessidade de se alapar ao peixe graúdo para poder vingar na vida. Sujeitam-se às tarefas mais sujas e são os primeiros alvos a abater quando as operações são desmanteladas ou condenadas ao fracasso.
2. Ambos centram a sua atividade no enriquecimento ilícito através de roubos e fraudes diversas;
3. Ambos assentam na absoluta lealdade dos seus membros;
4. Ambos visam, em última instância, a garantia de bem estar e altos dividendos para o seu clã.
Há, contudo, duas grandes diferenças entre o grupo criminoso inglês e o conjunto português de políticos criminosos. A primeira prende-se com o recurso à violência física dos Peaky Blinders para os ajustes de contas, que resultou frequentemente em mortes ou em mutilações sangrentas na sociedade britânica dos inícios do século XX. Já os políticos da Nação do século XXI são adeptos da ironia e da hipocrisia. Distribuem sorrisos como disfarces de ameaças veladas e ludibriam o povo com pequenas operações de charme de “toma lá um brinde”, quando nas costas, por métodos ardilosos, encontram um infindável rol de estratagemas para esmifrar os bolsos dos portugueses até ao último cêntimo. E é precisamente nesta questão que reside a segunda diferença entre as duas quadrilhas. Os Peaky Blinders geriam-se por códigos de honra, e um contrato verbal celebrado – selado com cuspo num aperto de mãos – valia mais do que qualquer documento assinado nos nossos dias. A Palavra era um instrumento de alto valor, usado de forma clara e inequívoca, em todas as relações sociais, não havendo lugar a dubiedade ou manipulações nos acordos estabelecidos.
Acresce ainda que o gangue britânico não tirava partido das classes desfavorecidas para aumentar a sua riqueza. Havia carácter, justiça e humanidade, numa sociedade em que os inocentes eram protegidos e o sentido comunitário sobressaía sobre os interesse individuais de cada um. Cem anos decorridos, à luz da realidade atual, o gangue português tornou-se numa criatura egocêntrica, gigante e obesa, virando costas a todos quantos a alimentam (contribuintes), que continuam a preferir viver de ilusões, num Portugal pequeno e fragilizado, em completa autofagia dos seus recursos e onde a Palavra foi apagada do glossário dos valores fundamentais. Até quando sobreviveremos?