Aterrámos no aeroporto Ninoy Aquino e mergulhámos no trânsito caótico do centro de Manila duas horas depois, assim percorrendo os sete km que nos levam a uma das cidades mais poluídas que conheci. Táxis, motas e tuk tuks atropelam-se em largas avenidas onde nem os passeios escapam à confusão, apojados de miúdos pedalando pequenas bicicletas com reboque para duas pessoas, rádios portáteis soando disforme e alto, de onde brotam musicas calminhas, de engate e romance.

Na verdade, é fácil deparar com estrangeiros abraçados a lindas raparigas filipinas, estranhos pares onde avantajados alemães e outros personagens de países ricos exibem, enlevados, as suas namoradas. Viemos a saber que, em muitos casos, são romances alugados à hora ou ao dia, vividos em quartos de hotel onde, pelo menos por algum tempo, as raparigas conseguiam encontrar desejado conforto e luxo. Com frequência deparamos com crianças lourinhas a brincar no pó das ruas, restos de aventuras amorosas pontuais. Os níveis de pobreza, desigualdade e desemprego permanecem elevados, com mais de 25% população a viver abaixo do limiar de pobreza nacional, enquanto o número total de trabalhadores desempregados e subempregados poderá ultrapassar os 10 milhões.
Costumávamos ir passar férias a Cebu, Porto Galera ou Buracay – nessa altura ainda eram lugares idílicos, praias limpas e seguras, agora parece que não é bem assim – mas desta vez resolvemos ir a San Fernando, cidade a norte de Manila, assistir a uma procissão muito especial. Por vezes nem dormíamos em Manila, mas nesta viagem resolvemos pernoitar no Hotel Sundowner, com direito a tremor de terra à chegada. Mas isso é outra história…
Não sabíamos muito bem o que iríamos encontrar. No guia Lonely Planet lêramos que, desde 1958, em plena ditadura de Carlos Garcia (mais uma das várias que têm assolado o país), na Sexta-Feira Santa os católicos das Filipinas celebram os últimos momentos da vida de Jesus Cristo, reconstituindo a Via Sacra, numa caminhada sangrenta subindo o Calvário. Eu tinha ouvido falar de um tal Ruben Enaje que, desde 1986, todos os anos era crucificado (descobri que, neste ano de 2025, Ruben Enaje, de 64 anos, foi crucificado pela 36ª e última vez, sob um sol escaldante). Cerca de 80% da população das Filipinas é católica, uma herança de 300 anos de colonização espanhola.
O que iríamos encontrar nesta mórbida jornada?
(Há quem pague para passar a noite na capital da Bósnia-Herzegovina, no War Hostel, onde os quartos não têm camas, travesseiros ou lençóis. Há apenas um colchão fino no chão, um cobertor pesado e o som gravado de tiros e explosões. A ideia é reviver a trágica guerra na Bósnia, de 1992 a 1995).

“Do que me lembro mais é de um enjoativo cheiro a sangue. Durante o desfile iam se vergastando…fomos mesmo até ao local da crucificação, ainda vimos um a ser erguido com a cruz, mas não aguentámos o cheiro e corremos para trás à procura dos outros, que tinham ficado para trás”, lembra a Zélia, companheira de muitas andanças pelos orientes. Eu recordo o calor sufocante, que fazia ferver os corpos em chaga: “mil vezes a chaga sobre a carne, do que uma só vez a chaga sobre a alma”, iam repetindo os caminhantes.
Na verdade, éramos um grupo de seis ou sete amigos de Macau, mas nem todos aguentaram e cumpriram o desígnio da viagem. Seguindo a multidão e após começar a subir uma pequena colina, representando o Calvário, deparámos com um espetáculo que logo levou parte do grupo a refugiar-se num café atolado de gente, “não viemos de férias para ver isto”, disseram, pedindo Coca Colas e, claro, San Miguel bem geladas…
Quem resistiu acompanhou o resto da subida até ao local da crucificação, rodeados de dezenas de novos e velhos com o tronco nu, vestindo sudários e coroas feitas de folhas, caminhando descalços pelas ruas empoeiradas, batendo ritmicamente nas costas ensanguentadas com varas de bambu, assim redimindo pecados ou pedindo bênçãos para amigos ou familiares doentes. Os “centuriões romanos” a cavalo, afastavam a multidão para a procissão passar. Num cartaz, em inglês e “pilipino”, lia-se “E carregando ele mesmo a sua cruz, saiu para o assim chamado Lugar da Caveira, que em hebraico se diz Gólgota (João 19:17)”.
No cimo da colina, num descampado, de onde se avista a cidade (como se de Jerusalém se tratasse!) para lá da multidão, pregos de oito centímetros são cravados nas mãos dos penitentes, antes dos “centuriões” levantarem a cruz que enterram na areia salpicada de seixos. Minutos depois os pregos são retirados, enquanto os antes pecadores, agora imaculados pelo sofrimento, dão entrevistas às televisões e jornais, ufanos, como heróis do momento. Não sei se consegui avistar Ruben Enaje, talvez apareça em alguma das centenas de fotos que a Fernanda mantém, “repórter” amadora dessa e muitas outras viagens (as fotografias que acompanham este texto são dela).
Última nota: faleceu hoje, dia em que escrevo esta história, o Papa dos afetos, da inclusão e da paz. San Fernando estaria a celebrar a Ressurreição, dia de alegria, mas esta morte terá trazido tristeza. Diz quem sabe que também pode existir alegria nessa tristeza, encontrando sincronismo entre morte e renascimento. Só espero que o novo Papa assuma o legado de Francisco, e Luis António Tagle está bem colocado, cardeal filipino, progressista e amigo de Francisco… mas a concorrência entre progressistas e conservadores, na igreja como na sociedade, é feroz.