O desacordo do Acordo Ortográfico
O malfadado Acordo Ortográfico, poucos anos após a sua aplicação efectiva, voltava à discussão pública e havia até quem sugerisse a anulação do mesmo ou significativa alteração do seu rumo. E continua a ser esse o panorama vigente, ainda. No que me diz respeito, é claro que não posso concordar com o dito. Mais: considero-o uma falsa questão e uma imensa perda de tempo.
Os argumentos utilizados nunca me convenceram; vejo mais vantagens nas diferentes formas de escrever o idioma de Camões do que numa uniformização castradora. Cá por mim, prefiro guardar as consoantes ditas supérfluas, pois há muita coisa supérflua que se guarda e não é por isso que vem mal ao mundo. Será que vamos descaracterizar uma língua só para satisfazer as ambições do mercado livreiro do Brasil que durante todos estes anos nunca se mostrou disposto a abrir a porta aos livros e revistas editados em Portugal – de muito melhor qualidade gráfica, diga-se de passagem –, utilizando o ridículo argumento de que no Brasil as pessoas não entendem o português que nós falamos, e do qual somos “donos”, contrariamente ao que se tem dito por aí, apesar desta afirmação nada ter de politicamente correcto? É apenas lógico que Portugal seja “dono” de um idioma que legou a outros povos. A Língua Portuguesa pertence-nos, sim senhor, como nos pertence a nossa História.
A mesma desculpa foi aplicada aquando da produção de conteúdos de audiovisual nacionais que almejavam (implorando!) chegar ao Brasil, isto enquanto há décadas nos vêm preenchendo a existência com horas e horas de telenovelas tropicais. Dizia o humorista João Pedro Gomes, anti-acordista assumido, que numa visita ao Brasil estivera a falar dez minutos com um carioca. No final, à despedida, este perguntara-lhe se ele era espanhol, argentino ou italiano, pois estava na dúvida… Cá por mim, só posso concluir uma coisa: o indivíduo em questão, ou estava a gozar com o homem da ‘Conversa da Treta’ ou então não passava de um perfeito imbecil.
Também eu vivi filmes do género. E aqui há uns anos vi recusada a minha colaboração para um jornal publicado em Tóquio, destinado à vasta comunidade brasileira residente no Japão, por escrever “em português de Portugal”, como se isso fosse crime…
A menos que o luso em questão seja um habitante de Rabo de Peixe (para quem não sabe, povoação da ilha açoriana de São Miguel com um linguajar muito característico), a Língua Portuguesa, falada pausadamente, é perceptível a todos, seja ao algarvio retinto, ao bangla que reside em Portugal há um ano, ao timorense que nunca aqui esteve ou ao mais impregnado dos nordestinos, cangaceiro ou coronel, isso pouco importa. E como gosto eu de ouvir falar os nordestinos! Eles que tantos antigos vocábulos portugueses preservam, inexplicavelmente arredados do nosso vocabulário corrente. É esse português do Brasil que interessa preservar, e não submetermo-nos a um tipo de português que usa ‘time’ em vez de equipa ou ‘ônibus’ em vez de camioneta.
Se eu me delicio a ouvir os nordestinos falar (sou capaz de ver uma telenovela só por causa disso), por que é que os nordestinos não se hão de deliciar a ouvir-me falar a mim que tenho pronúncia do Norte (e com muito gosto!) e utilizo palavras como “ranco”, “trengo” ou “cíone”, com a perfeita consciência de que muitos dos portugueses as desconhecem. Mas se as usam a gente da minha terra há centenas de anos, não serão elas tão legítimas quanto aquelas utilizadas pelos lisboetas, pelos madeirenses ou pelos cabo-verdianos da Ilha do Sal? Curiosamente, muitos dos senhores que não hesitaram em adoptar termos como “parabenizar” olham-me de soslaio quando digo “ougado” ou “pinchar”, palavras a que recorro desde a minha infância.
A adopção oficial do Acordo Ortográfico foi um reflexo da nossa já ancestral subserviência. Neste caso, em relação a um Brasil que nunca nos deu grande troco nem se interessou por conhecer a realidade histórico-geográfica e socio-cultural que está na génese da sua própria realidade. Bem sabemos que Paris, Londres ou Milão fazem sonhar os canarinhos bem mais do que a luz que tudo faz espelhar no Tejo ou os refrescantes verdes do Minho, de onde são originários grande parte dos antepassados dos brasileiros de hoje que acerca de nós conhecem anedotas e pouco mais. Em terras de Vera Cruz os portugueses conseguem impor-se pelos investimentos que fazem, isto é, conseguem impor-se pela força dos euros, jamais pela força da sua cultura, apesar de esta ser a argamassa fundamental que solidificou a cultura deles. Ao longo de anos de visitas oficiais, de trocas e baldrocas, turistas a esmo e de um pretenso intercâmbio cultural entre “os países irmãos”, qual o cantor, músico, artista plástico, actor, realizador de cinema, escritor, poeta, ensaísta com visibilidade de monta junto do comum dos brasileiros? Nenhum, é a resposta.
Já em sentido inverso, qualquer raiano ou habitante de bairro social conhece vários dos intervenientes das telenovelas ou dos canto-autores que só por cá aparecem a dizer que gostam imenso de nós quando lançam discos novos e os precisam de vender.
Aos que argumentam com as vantagens – económicas, culturais ou outras – do ‘acordês’ atiro-lhes com o exemplo anglo-saxónico. Os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Austrália e todos os restantes países anglófonos nunca assinaram qualquer acordo de cariz ortográfico e no entanto têm o poder que todos constatamos.
Para mim o cerne da questão, aquilo que todos falantes de português se deviam questionar, é o seguinte: porque razão é que continuam a ser tão poucas e tão ridiculamente ténues os pontos de contacto apesar de nos conhecermos, estarmos até profunda e geneticamente enleados uns nos outros, há mais de meio milénio?