Imaginemos um cenário digno de Buñuel, mas com cheiro a tremoços e cerveja derramada: dois adolescentes entrelaçam-se num duelo de punhos, as faces rubras de ódio, os olhos vidrados numa fúria pré-histórica — dessas que só se vêem em velhos do tasco a discutir quem pagou a última mini.
À volta, uma roda de colegas, telemóveis em riste, filmam o espetáculo. Ninguém grita “chega!” ou “ó Zé, isso não se faz!”. Ninguém avança para travar o sangue, como se fosse cena de um filme do Van Damme mal dobrado. Apenas dedos deslizam em ecrãs, ajustam enquadramentos, garantem que a luz está boa. “Eh pá, filma de lado, que o outro está com a cara na sombra!”, berra um. O objetivo? Capturar a tragédia em 4K para, minutos depois, viralizar no corredio de uma rede social cujo nome já ninguém sabe pronunciar sem cuspir três pedras e fazer figas.
Há meio século, quem não separasse uma rixa entre galinhas no terreiro da aldeia era apodado de “covardolas” e condenado a pagar rodas de bagaço até ao Natal. Hoje, quem ousa interromper o reality show da violência é um herege. O herói moderno não arrisca a reputação para salvar um colega; arrisca pixels para ganhar likes. E perguntamos, entre um gole de imperial e um tirinho de aguardente: quando é que o “oh filho, isso não se faz!” se transmutou em “deixa-os bater, que isto vai render umas visualizações”? Quando é que o “bom senso” se tornou sinónimo de “epá, mas olha o enquadramento”?
Delírios
Segundo um eventual relatório do Instituto de Vigilância Digital, 87 por cento dos jovens entre os 13 e os 20 anos admitem preferir gravar uma agressão a intervir. Motivo? “Não quero estragar o vídeo”, confessou um inquirido, num acesso de sinceridade digno de um filósofo no oblívio ético. A lógica é de tasca: se não há fimezinho, o acontecimento não existiu. E se não existiu, como provar que se esteve lá, que se foi testemunha, que se participou? É como discutir futebol sem ter visto o jogo — pura blasfémia.
Ora, levemos este raciocínio às últimas consequências, como quem leva uma discussão sobre o Benfica às três da manhã. Se a prioridade é a documentação, não a ação, brevemente teremos aulas de “Cinematografia de Emergência” nas escolas. Professores especializados ensinarão técnicas de enquadramento durante tiroteios (“nunca filmes de baixo para cima, que o nariz fica gigante”), como para disfarçar hematomas (“usem o filtro ‘Valencia’, disfarça o roxo”), hashtags adequadas a cada tipo de violência (#BrutalidadeComPiedade, #SocosParaAMudança). Emanuel Zéfiro, então presidente do Observatório de Comportamentos Virtuais, alerta, entre um trago de Agostinho da Silva e um suspiro: “Estamos
a criar uma geração de operadores de câmara humanos, cuja única empatia reside na qualidade do ‘zoom’. Até os cães de rua já ladram na vertical dos telemóveis.”
Mas, se o povo vê, a CMTV dá
E não nos enganemos, como quem acha que a sexta imperial não faz mal: o problema não mora apenas nos miúdos. Empresas de tecnologia investem em algoritmos que privilegiam vídeos de conflitos, pois gerem tráfego e lucro. UEstudos há que revelam que publicações com agressões têm o dobro ou o triplo de mais partilhas do que vídeos de gatinhos ou tutoriais de croché. A mensagem subliminar é clara: a selvajaria vende. A compaixão, essa, é nicho — como tentar vender tremoços num bar de ‘sushi’. Se a acção tiver sangue e mortos, é certo ver a filha da Tânia em directo do local…
Mas eis o paradoxo, mais amargo que café de estação de serviço: culpar os adolescentes por esta epidemia de passividade é como censurar um bêbedo por cair. Eles não inventaram o circo, apenas herdaram os bilhetes. Quem lhes deu os telemóveis? Quem lhes ensinou que a vida é um palco onde cada segundo não registado é um segundo desperdiçado? Os adultos, claro. Os mesmos que, em reuniões de trabalho, disputam quem tem a melhor story do jantar, que filmam concertos em vez de os verem, que transformaram a existência numa sucessão de posts à espera de validação. Somos nós, ó Zé Manel, que lhes mostrámos que um “gosto” vale mais que um abraço.
Aqui jaz a ironia suprema, mais cortante que navalha de barbeiro cego: os dinossauros não morreram por causa dos asteroides. Morreram porque, quando os extraterrestres lhes ofereceram telemóveis, esqueceram-se de olhar para cima. A extinção chegou discretamente, entre piadas de gatos e tutoriais de maquilhagem.
Há, contudo, um fio de esperança — fino como o fumo do último cigarro da noite. Numa escola de Viseu, uma aluna de 16 anos interrompeu uma briga, desligou o telemóvel de um colega, e disparou: “Se querem filmá-la tanto, filmem-me a mim a dar-vos na cabeça. E já agora, aprendam: quem não aparta briga de cães, vai dormir sem ceia.” O vídeo, claro, tornou-se viral. Mas desta vez, o herói era real. E a legenda? “Esta miúda tem mais tomates que o Cristiano a marcar livres.”
E enfim…
A mudança, quando vier, não nascerá de manuais de civismo ou campanhas de marketing emocional. Nascerá do cansaço. Do dia em que um miúdo perceber que ser influencer de miséria é tão efémero como um vídeo de 24 horas — ou como a paciência de um gajo que espera uma consulta durante 19 meses no SNS. Até lá, resta-nos a perplexidade perante um mundo onde a coragem se mede em visualizações, e o silêncio dos espectadores é o som mais alto da sala. É como dizia o velho Chico da “Isca Bela”, antes levar um murro por causa de uma dívida de dois euros: “Quem não mete a colher, não sabe o sabor da panela.”
E aos adultos que os criticam, lembrem-se: os filhos não caíram do céu. Caíram do vosso exemplo — e, pelo visto, aterraram de cara no ecrã.