Há momentos, na vastidão opaca da contemporaneidade, em que o observador atento é forçado a deter-se. Instantes de singular clareza na bruma do quotidiano, que revelam, com a precisão crua de uma chapa de raio-x, a arquitectura subterrânea das nossas ansiedades colectivas.
O véu diáfano da normalidade rasga-se, expondo não um abismo de mistérios insondáveis, mas sim um poço de medos perfeitamente mundanos, embalados em retórica pretensiosa. É chegada, parece, a hora de auscultar a febre do tempo.
Observo, com a devida distância que a higiene mental impõe, o burburinho que chega de terras italianas – nação irmã, afogada, por vezes, na sua própria exuberância operática.
Relatam os alfarrábios electrónicos que uma escola, de pendor cristão e intenções aparentemente pedagógicas, ousou aventurar os seus jovens pupilos por terras inóspitas e, pasme-se, outras. Falamos, claro, de uma visita guiada a uma mesquita e a uma sinagoga, numa aparente tentativa de expandir horizontes, ou, no mínimo, de preencher tempos lectivos. Fê-lo uma escola primária da Federación Italiana de Guarderías, em Ponte della Priula, província de Treviso. O gesto, singelo na sua execução, teve o condão de incendiar os ânimos de certa fação do espectro político, gerando ondas de pânico que fariam corar os personagens mais histriónicos da Commedia dell’Arte.
A reacção, como se a própria Bula Unam Sanctam tivesse sido publicamente rasgada na Piazza Navona, foi imediata e visceral. Vozes agastadas ergueram-se em uníssono, anunciando, quiçá, a próxima peste ou, pior, a perda definitiva de mais uma alma jovem para o pântano viscoso do… do… bem, do diferente. A ideia de que uma mente em formação pudesse ser exposta a narrativas alheias, a espaços de culto distintos, a símbolos que não “os seus”, pareceu a estes arautos da pureza ideológica um prelúdio do caos, um convite aberto à apostasia generalizada. O ecumenismo, essa criatura estranha e por vezes mal-amada, foi esticado para lá das suas fronteiras habituais, sim, e ainda bem. Mas não nos adiantemos.
A raiz profunda deste sobressalto, desta crise epifânica às avessas, não reside na viagem em si, nem no propósito pedagógico (por mais ingénuo que fosse). Não. O cerne do pânico reside noutra paragem, bem mais sombria e, curiosamente, reveladora. É que o medo visceral de que uma criança, ao conhecer o mundo — nas suas variadas manifestações, mesmo as mais triviais —, possa deixar de ser… digamos… gerível, denuncia uma falência mais vasta. O pavor de que a curiosidade e o interesse possam desmantelar certezas pré-fabricadas, de que a exposição ao outro fragilize a devoção ao eu (ou ao “nós” tribal), é um sintoma inequívoco de valores éticos e morais que se equilibram numa navalha, prontos a precipitar-se ao menor toque. Quanto mais frágil o alicerce, maior o tremor perante o sismo mais ténue.
O pânico italiano desta semana, elevado ao grau de espectáculo público, nada mais é do que a confissão, gritada em praça pública, das enormes dificuldades que o cristianismo, em particular, e a fé dogmática, em geral, enfrentam em manter a sua hegemonia num mundo que insiste em pensar. E aqui reside uma ironia fina, quase cruel: foram os próprios estudos teológicos, essa disciplina nobre e por vezes esotérica, com as suas revisões históricas, a sua exegese sofisticada e o seu inerente relativismo, a limar as garras do dogma. A fé, para se manter relevante na arena intelectual, teve de se tornar mais porosa, mais dialogante, menos monolítica. E agora, colhe-se o que se semeou: o edifício é mais complexo, mas, para as mentes simplistas, parece mais vulnerável. E a vulnerabilidade gera, invariavelmente, histerismo.
O histerismo da direita e a cacofonia sem sentido que emana das borboletas de extrema-direita são a epítome da hipocrisia. Alberto Villanova, líder da Lista Zaia e da Liga, coligação de extrema-direita, na região, assegura com a cara roxa: “Uma provocação inútil que não faz bem a ninguém. As imagens fazem-me calafrios”. Que as criancinhas passem horas enfurnadas em salas a repetir dogmas, a memorizar narrativas milenares sem contexto crítico, a aceitar in totum um conjunto de crenças como verdade absoluta — a boa e velha catequese católica, em suma — e eles batem palmas, considerando-o salutar e edificante. Acham perfeitamente normal que se “lixe a cabeça” aos putos, cimentando-lhes o crânio com verdades “reveladas”. Mas quando uma escola, ainda que confessional, mostra um vislumbre do mundo exterior, um mero átomo de alteridade, ai, então, grita-se o apocalipse, a perdição da juventude, o fim da civilização como a conhecemos.
O que esta reacção desmedida e francamente patética revela é que estes senhores, empoleirados nos seus púlpitos de indignação selectiva, já não acreditam verdadeiramente na força da fé. Já não confiam que o cristianismo (ou qualquer outro sistema de crenças que defendem) possa ser assunto de convicção íntima, de adesão livre e esclarecida, de crescimento espiritual baseado no diálogo com o sagrado e o profano. Não. Para eles, a fé transformou-se num mero instrumento de controlo social e político, que só sobrevive se for enfiado à paulada nas cabeças tenras, se for inoculado antes que a capacidade crítica desperte. E, para garantir a máxima eficácia desta vacinação ideológica, nada melhor do que impor palas nos olhos, para que a visão não se perca em paisagens indevidas, mesmo sendo obra do mesmo “deus”.
Afinal, a verdadeira heresia, aos olhos destes zelotes modernos, não é duvidar de deus, mas sim duvidar das fronteiras que eles próprios traçaram em nome do “altíssimo”. A verdadeira perdição não é a falta de fé, mas sim o excesso de curiosidade. Temem que a luz, ao incidir sobre a complexidade do real, revele a fragilidade das construções monolíticas. Preferem a penumbra confortável da ignorância controlada, onde o dogma se mantém robusto não pela sua verdade intrínseca, mas pela ausência de comparação.
E assim, enquanto os defensores da mente fechada se agitam em pânico, temendo que um passeio a uma mesquita possa desarranjar séculos de doutrinação, resta-nos observar. Chorar, talvez, da absurdez do espectáculo, ou rir pela tristeza de uma visão de mundo tão pequena e assustada. Afinal, entre a sátira mais refinada e a mais crua das realidades, por vezes, a diferença resume-se a um mero jogo de luz e sombra. E o pânico da ignorância, meus caros, é sempre um espectáculo sombrio. Mas a esperança, essa, teima em espreitar pelas frestas. Mesmo as mais apertadas.