Diretiva da UE contra SLAPPS – ou abuso de litígios judiciais contra jornalistas – deve ser aprovada até final do ano.
A Comissão Europeia prevê emitir uma Diretiva sobre medidas anti-SLAPPs, para dissuadir a censura sob a forma de litígios contra jornalistas, até final de 2023. Até lá preconiza que os estados membros comecem já a registar e a reportar casos desses abusos à Comissão.
O documento da EU, que tem uma visão alargada de informação e liberdade de expressão, pretende alertar os Estados membros para um fenómeno crescente e embora, ainda não vinculante, recomenda que os estados membros comecem a preparar as legislações e garantias, de forma a reportarem os casos abusivos à Comissão, ao longo de 2023.
Esses litígios judiciais, sobretudo contra jornalistas e defensores dos direitos humanos, visam intimidar de forma a dissuadir ou silenciar, através do medo, aqueles que no âmbito da liberdade de expressão, denunciam situações que atentem contra o interesse publico.
Na proposta de Diretiva, agora em consulta por diversos atores, aprovada pela Comissão Europeia em 27 de abril de 2022, propõe-se também que os estados membros promovam a sensibilização da sociedade contra tais estratégias “intimidatórias” sobre o debate público e a democracia.
Embora sob a forma legal, de que é exemplo a difamação, estas estratégias aparecem sob a forma de processos penais, cíveis e administrativos, com pedidos de indemnizações colossais, que levam a que, aqueles que investigam ou criticam, a calar-se, pedir desculpas ou a “corrigir” declarações, com prejuízo do estado democrático.
Em 20 de Outubro de 2022, o Centro Europeu de Liberdade de Imprensa e Média (ECPMF) e a Coligação anti-SLAPP na Europa (CASE), realizaram em Estrasburgo, a Conferência Europeia Anti-SLAPP, com o patrocínio do Parlamento Europeu e o apoio do Conselho da Europa. Esse encontro visou avaliar as iniciativas políticas europeias e nacionais .contra este tipo de estratégia, refletir sobre o seu impacto no jornalismo e discutir o apoio financeiro e prático disponível para jornalistas visados por SLAPPs.
Mas afinal o que são SLAPPs?
As Ações Estratégicas Contra a Participação Pública (SLAPPs) são ameaças legais e ações judiciais, utilizadas por indivíduos e grandes corporações, para cercear a liberdade de expressão, intimidando e desencorajando os jornalistas a coletar e publicar informações sobre assuntos públicos, através de processos de alto custo e duração.
O termo, acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation, foi introduzido em 1996 pelos académicos George Pring e Penélope Canan, da Universidade de Denver. Na sua obra SLAPPs: Getting Sued for Speaking Out, os autores explicam as principais características e perigos dessas estratégicas, no conceito americano, ilegais em vários Estados.
Há quem utilizando a sua tradução literal, lhe chame um” estalo” na democracia, pelo impacto de tais estratagemas jurídico-legais sobre a crítica, a verdade e a liberdade, tão necessárias à saúde do discurso público.
Geralmente são ações eficazes, porque, mais do que ganhar a causa em tribunal com todos os seus custos, esgotamento de recursos e meios, visam destruir as vidas pessoais. Pring definiu que deve ser uma questão de interesse público a que vai distinguir os processos judiciais legítimos daqueles que visam impedir o discurso público.
Em Portugal e esse tipo de “bofetada na democracia” é pouco conhecido do público
Para compreender a perceção dos cidadãos sobre o que são as SLAPPs e a importância no seu combate, lançámos um inquérito com cinco questões que foi colocado na rede social Facebook. Um inquérito feito pela autora nas redes sociais, para compreender a perceção dos cidadãos sobre o que são as SLAPPs, e que esteve online de 20 de março a 30 de março de 2022 revelou que em Portugal há muito pouco conhecimento deste problema que afeta a liberdade de expressão e a democracia. Destinado a uma publicação na revista “Justiça com A” obteve-se uma amostra, de conveniência, de 127 respostas.
Os respondentes eram jornalistas, magistrados, advogados, professores, administrativos sociólogos, assessores, juristas, engenheiros agrícolas, técnicos de sustentabilidade, enfermeiros, médicos, empresários, funcionários públicos e outras não especificadas.
A análise descritiva, da amostra, destaca que mais de metade dos respondentes são mulheres (60,6%). Os homens representam 39,4%, das pessoas que preencheram o questionário. No que diz respeito às idades, sobressarem as pessoas entre os 26 e 52 anos e dos 52 aos 78 anos. 89% dos participantes possui o ensino superior e os restantes 11% têm o ensino secundário.
Grupos de idades
Menos de metade conhece o termo SLAPP
Sobre o conhecimento do termo SLAPPs (acrónimo de Strategic Lawsuit Against Public Participation), verificou-se que a maioria dos respondentes desconhece esse termo (66%,1). Os que conhecem representam 33,9%.
Maioria defende leis anti-SLAPP e sensibilização ética dos cidadãos
Convidados a sugerir medidas que contrariem tais processos judiciais estratégicos ou abusivos contra, 70,9% dos respondentes defendeu a criação de leis para o efeito.
Quase metade dos participantes no inquérito sugeriu que os magistrados devem ser sensibilizados para o problema (49,6%). Outro tanto (47,2%), preconiza que se fomentem medidas dissuasoras no sentido de evitar que tais processos prossigam.
Em quarto lugar surgiu a importância da sensibilização de jornalistas para o problema das SLAPPs (31,4%), seguindo-se um maior conhecimento do tema pelos ativistas de direitos humanos (14,2) e ambientalistas (7,9%).
Outras medidas sugeridas pelos participantes, e em igual percentagem, apontam para a transparência de processos, educação ética aos cidadãos, educação no ensino universitário, sensibilização de advogados e mudança de regime político (0,8%).
Uma larga maioria defende proteção dos jornalistas na sua atividade
Quando instados a comentar se os jornalistas precisam de proteção no exercício do direito a Informar, os participantes, uma larga maioria (84,3%) confirmou que os jornalistas precisam de proteção no exercício da sua atividade. 15,7% dos respondentes disseram que os jornalistas não precisam de proteção.
Sobre a equação da trilogia do Direito à Informação, a Informar e ser Informado, enquanto direitos fundamentais, 68% dos inquiridos confirmaram com um “Sim”, que estes direitos são direitos fundamentais.
Outros respondentes, em percentagens inferiores, manifestaram a sua concordância com expressões: “absolutamente”, “sim, mas com limitações”, “completamente”, “sem abusos”, “constitucionalmente”. Tais resultado, leva-nos a inferir que todos os participantes no inquérito concordam que estes direitos dão fundamentais.
Convidados a partilharem, sucintamente, os casos que conheciam, obtivemos a partilha de doze pessoas.
Algumas partilhas indicam situações publicamente conhecidas, como o caso de Luanda leaks/ Isabel dos Santos e dos guardiões do Tejo, mas do conjunto das respostas surgem outras que indiciam estratégias limitadoras da liberdade de expressão: “um juiz desembargador residente no interior profundo do país que põe ações contra jornalistas em tribunal muito recôndito e pede indemnizações de centenas de milhares de euros” exemplifica um dos participantes.
Outro exemplo citado relaciona-se com “atentados ambientais em que se denunciam crimes ambientais e depois quem denuncia sofre retaliações”.
“A participação em assembleias gerais via digital ou presencial que limitam a participação de quem não tem acesso a meios digitais ou vive longe do local da AG.”, foi também uma circunstância cerceadora da liberdade de expressão.
Outra partilha refere que “o próprio Estado, consciente do seu dever de proteção social aos contribuintes, sobrecarrega a justiça com processos que estão perdidos à partida. A referência de que “alguns artigos de jornalistas, são pagos no sentido de influenciar a opinião”, são exemplo de estratégias cerceadoras do apuramento da verdade, apontadas pelos respondentes
Por último foi partilhado o facto de funcionários de uma autarquia terem denunciado casos de corrupção durante uma assembleia geral, e depois foram surpreendidos com processos disciplinares, sendo obrigados a desmentir o que disseram e acusados de terem o “complexo de Deus”.
Na Europa as SLAPPs preferem os media para abafar corrupção e discriminação
Ao contrário dos Estados Unidos da América, onde pelo menos dezanove estados têm medidas anti-SLAPs, na Europa não existem ainda leis específicas, ainda que sejam cada vez mais o número de casos detetados.
O mais recente relatório anual da Plataforma do Conselho da Europa para a proteção e segurança dos jornalistas (2021), alerta para o crescente aumento das SLAPSs. Também o relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos, Clement Nyaletsossi Voule, notou o crescer de ações de empresas contra ambientalistas.
Um estudo da OSCE sobre os media e o abuso do sistema judicial (2021), elaborado pelo CASE – Coalition Against SLAPPs, grupo de organizações não governamentais, base de consulta pela Comissão Europeia, concluiu que os alvos principais são os jornalistas e os media. Os seus perseguidores são políticos e gente do mundo dos negócios. Os assuntos têm um carácter internacional e dizem respeito à governabilidade, corrupção, negócios, discriminação, às polícias e à segurança.
A pesquisa In Europe: How The EU Can Protect Watchdogs From an Abusive Lawsuits, efetuada em 31 países incluindo Portugal, identificou 530 casos entre 2010 e 2021.
O Reino Unido e a França surgem em primeiro lugar e com processos de carácter internacional. Neles se verificam uma relação de poder muito díspar, pois quem mais coloca os litígios são empresários (34/%), políticos (24%), figuras públicas e organizações.
O assassínio da jornalista, Daphne Galizia, foi ponto de alerta máximo.
Foi depois do assassínio, em Malta, da jornalista de investigação Daphne Caruana Galizia, em outubro de 2017, que se fez sentir com maior acutilância a necessidade de medidas de contenção do fenómeno SLAPPs. O Conselho da Europa revelou em 2020 que, mesmo depois da sua morte, alguns das 40 ações que lhe foram movidas persistem e estão pendentes contra seu marido e três filhos. Os alertas sobre este tipo de litígios têm sido assinalados por diversos países e, em 2018, a Resolução do Parlamento Europeu sobre Media Pluralism and Media Freedom in the European Union, de 3 de maio, preconizou a elaboração de uma Diretiva sobre leis que contrariem o alargar deste problema na Europa.
O CE diz que este problema não diz respeito apenas à imprensa, mas a todos aqueles que falam pelo interesse público e responsabilizam os poderes. Todos correm o risco de se tornar o alvo de “SLAPPs”.
Vários textos aprovados no âmbito do Conselho da Europa referem-se ao problema, ou de outras formas de procedimentos intimidativos ou vexatórios intentados contra media e jornalistas, incluindo online.
Na Europa, a Recomendação sobre as funções e responsabilidades dos intermediários da Internet, adotada pelo Comitê de Ministros em março de 2018, estabelece a seguinte obrigação: “As autoridades nacionais devem considerar a adoção de legislação adequada para evitar litígios estratégicos contra a participação pública (SLAPP) ou abusivos e vexatórios, litígio utilizado com o objetivo de restringir o direito à liberdade de expressão de usuários, provedores de conteúdo e intermediários”.
Também a Declaração do Comitê de Ministros sobre a utilidade das normas internacionais relativas à busca oportunista de jurisdição em casos de difamação (2012), trata de um aspeto específico das SLAPPs: “Turismo judicial”, uma tática amplamente utilizada de buscar um foro de fácil apreensão e que se considere o mais apto, para proferir a decisão mais favorável.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) já apreciou vários litígios sobre o equilíbrio entre a liberdade dos media e a proteção da reputação individual. Por exemplo, em 2017 o Tribunal julgou uma ação de difamação contra um editor do jornal diário irlandês, Herald, condenado a pagar mais de um milhão de euros. Alegou que a condenação foi excessiva e violou o direito à liberdade de expressão.
Na sua deliberação o TEDH clarificou que não é necessário decidir se a indemnização por danos, impugnada, teve, de facto, um efeito assustador na imprensa: “Por uma questão de princípio as indemnizações imprevisíveis, em casos de difamação, são consideradas capazes de ter tal efeito e, portanto, exigem o escrutínio mais cuidadoso (…)”.
PORTUGAL: vários casos exigem reflexão
Em Portugal as ações estratégicas para silenciar a crítica começam a evidenciar-se perante processos de investigação e, embora não se saiba se são deliberadas, porque legais, algumas suscitam uma específica reflexão.
O país foi colocado quarto lugar, num concurso europeu para chamar a atenção dos maiores agressores legais, pela Coalition Against SLAPPs in Europe (CASE) que promoveu em 2021 o European SLAPP Contest. Nele ficou registada a empresária Isabel dos Santos, na categoria internacional “concedida aos esforços mais desavergonhados de um reclamante internacional para usar os tribunais europeus para silenciar críticas dissidências”.
A filha do ex-presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, foi referida no início de 2020 pelos Luanda Leaks, e deu origem uma série de investigações criminais em empresas associadas em Portugal, Angola e Holanda.
A CASE recorda que, alguns meses antes dessa divulgação, a empresária processou a ex-eurodeputada portuguesa Ana Gomes que a acusou de lavagem de dinheiro, alegando que a sua reputação e bom nome foram prejudicados.
Em 2018 o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas alertou para estes processos no que considerou “Bulling económico” e deu exemplo da TVI, alvo de processos indemnizatórios na sequência da emissão do trabalho de investigação das jornalistas Judite França e Alexandra Borges, intitulado ‘O segredo dos deuses’. Neste eram relatados factos de interesse público sobre responsáveis da Igreja Universal do Reino de Deus num processo pouco claro de adoções de crianças.
Outros jornalistas têm sido alvo de ações idênticas. O jornalista José António Cerejo e o jornal Público, a propósito de uma investigação sobre o comportamento do ex-primeiro ministro José Sócrates quando era deputado do PS por Castelo Branco. Este ameaçou, já em 2022, processar diversos media e jornalistas sobre a cobertura do processo judicial por corrupção, “Operação Marquês”, em que está envolvido.
Jornalistas estão comprometidos com a verdade
A Carta de Ética Global , aprovada pela Federação Internacional de Jornalistas, que atualiza o código de Ética de Bordéus de 1954, evoca o direito de todos à livre informação no âmbito do artigo 19º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e proclama que “a responsabilidade do jornalista com o público tem prioridade sobre qualquer outra responsabilidade, em particular para com seus empregadores e autoridades públicas”.
Recorda que o jornalista deve respeito à verdade à proteção das fontes e à não discriminação.
Também o Código Deontológico dos Jornalistas Portugueses refere que o jornalista “digno desse nome, não deve ser compelido a desempenhar atos contrários às suas convicções ou à sua consciência”.
Ambos os documentos relativamente à ética e conduta dos jornalistas contêm: “ o direito de investigar livremente os factos de interesse público”; O dever de “não suprimir informações essenciais”; o dever de “verificação dos factos” e “o respeito pela dignidade”. (OL)