A Pátria desceu ao barlavento e ao sotavento algarvios, enfastiados pelo confinamento que lhes fora imposto, aproveitando os feriados da Raça e da Religião, que secundarizados ficaram na sua essência. Lisboa ficou vazia, ao invés das estradas que se enchiam de carrões potentes, incabíveis em Rossios nem Betesgas, em filas intermináveis que atulhavam as longas faixas da A2. Duas da tarde. Já se circulava a menos de 100km/h, de regresso à capital. Eu ia à direita, para que pudesse sair numa nesga e fugir àquela infernal pandemia de motores.
Enquanto isso, olhava os carros que passavam, com as suas matrículas já mais alfa que numéricas, que novos eram os carros, da década de vinte deste século. Ele eram Porches, quais imponentes se mostravam, Mercedes, muitos, impetuosos, com litros abundantes no motor, três, quatro, cinco, cubicagens delirantes que a terra faziam tremer. BMs, Jaguares, Jeeps, tudo de cavalagem vigorosa, proibitiva para o mortal comum – que estes não eram os casos, visto está! Ele eram Mustangs, capotáveis, sem capota, carros autênticos, que aquilo não se pode nominar de veículo! Um Maserati desfilou, com o seu tridente soberbo, que lhe tomava toda a grelha dianteira, e a terra voltou a tremer. Ao volante um figurão divino semelhava Neptuno, altivo de porte, desdenhoso ao que o rodeava. Mais suaves, os Teslas insonorizados, mas não menos discretos, saturavam as faixas à esquerda, oitenta mil euros na etiqueta, que por menos não se alcança a gama base. Que pasmo! Que riquezas aquelas, assim ostentadas, como se de um país facultoso se tratasse! Carros grandes e brilhantes. Grandes e brilhantes carros! Que povo nobre, este; valente e imortal, a Nação! Que pragas?, quais andaços ou pestilências?
Agora o trânsito parecia mais fluido, e decidira-me a continuar por ali. Das 3 faixas, ocupava então a central. À minha direita, um veículo com umas bagageiras por cima, carregado de sacas, também ele se achava no direito de por ali voltear, com dois cães muito agitados na mala que ligava ao interior do Lada, onde três crianças muito animadas faziam por se deixar lamber pelos patudos. À frente, uma mulher descontraída, um gato no colo, desentranhava com uma pinça pêlos da venta, enxergando-se no espelho de cortesia.
Ao volante, um Tjequim Menel assobiava uma modinha, enquanto conduzia aquela arca com rodas, saracoteando a cabeça. Passei e fiz, também eu, um ar importante, com a altivez que me ocorreu no passo e vira fazer. Pareceu sorrir-me, o Tjequim, desapaixonado às máquinas que por ele cruzavam, milhares, todas brutas, brutais! Mas ele não deixava de assobiar, que as toadas se encadeavam umas nas outras.
Ocorreu-me o episódio de um outro Tjequim, também Menel, que fora a Lisboa pra ver a filha, que estava de graças. Abalou na carreira, madrugada fresca, queria chegar cedo. A camioneta não o punha à porta, é de ver; de táxi?, nem pensar, uma roubalheira! Decidiu-se por um autocarro, que logo lhe indicaram ali qual seria. Era no tempo dos picas, que iam de lado em lugar cobrando o bilhete. Apurou os sentidos, o nosso homem, que não queria fazer de parvo a figura. Ouviu à frente, sonoro, o passageiro: “Marquês de Pombal”; à esquerda um outro: “Duque de Saldanha”; ao lado um terceiro, com brado cheio, “S. Sebastião”. Era a vez dele, agora, com o pica erecto, ali, diante à sua figura. Saiu-lhe ressoante, a voz cristalina, a poder das gemadas: “Tjequim Menel”. “Pra onde vai, homem?”, impacientou-se o dos bilhetes. Ah, era isso que ele catava! “A ver a piquena, que está pra parir”. Pobre Tjequim Menel, que o mundo não lhe está formatado! Quais autocarros, quais estradas?… não há a sua medida.
Que heróis estes, de outros mares, mais igrégios que egrégios! “Nobre povo, nação valente e imortal…”