A narrativa político-partidária, a nível nacional e local, contra os “populismos” de esquerda e de direita – ou mesmo do centro, seja o “independente dos partidos” seja o autoconsiderado “apolítico” – revela-se um “pau de dois bicos” em que o escudo e a armadura de quem freneticamente o brande diz mais sobre as suas pérfidas intenções do que a referida narrativa (feita rabo escondido com o gato de fora). Travestida de defesa da democracia e suas instituições, o propósito anunciado constitui uma ameaça real ao pilar participativo da democracia.
Eu explico-me. Escudados numa cruzada contra pretensos “populismos” e “abusos da liberdade de expressão” nas novéis redes sociais – excessos que indubitavelmente existem e precisam de ser democraticamente prevenidos – dirigentes de diferentes partidos políticos do chamado “arco da governação” (ou, mais prosaicamente, da situação feita situacionismo, também conhecida por “bloco central de interesses”) e, até, cândidos cidadãos, têm sugerido a limitação do direito fundamental à liberdade de opinião e expressão, perseguindo quem denuncia a corrupção, a incompetência e o abuso do poder. Como escrevi há meia dúzia de anos (ler em https://mediotejo.net/as-redes-sociais-e-as-tropelias-do-poder-por-jose-rafael-nascimento/), esta tentativa de restrição da principal liberdade democrática dos cidadãos visa – não tenhamos qualquer dúvida sobre isso – prejudicar o exercício da cidadania livre e participativa e a formação de uma opinião pública informada e crítica, reforçando os poderes autocráticos instalados e resistentes à alternância, adeptos de valores retrógrados e reacionários avessos ao progresso e à evolução civilizacional, interessados na discriminação e exploração das camadas sociais mais frágeis ou afastadas das elites dominantes.
O certo é que as redes sociais têm permitido aos cidadãos uma intervenção mais poderosa na vida pública, seja disseminando informação antes ocultada ou reservada às elites, seja passando a palavra livre que faz opinião consciencializadora e influencia rapidamente toda uma comunidade. Importa, obviamente, que essa palavra seja bem usada – com elevação nos modos e profundidade nas ideias – mas não se lhe exija que tenha o rigor dos especialistas ou a verificação dos jornalistas. Ao cidadão comum, só se lhe pode exigir aquilo que é razoável e está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta afirma, no seu Artigo 19.º, que “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. Nada é aqui condicionado ao
conhecimento prévio ou seletivo da matéria de opinião e expressão, embora esse saber e confirmação dos factos possa (e deva) ser procurado por quem se expressa ou opina, assim como requerido ou instado, de forma e em grau razoáveis, pelos recetores ou audiências.
Os populismos, ao contrário do que se procura fazer crer, não provêm exclusivamente (nem maioritariamente, porventura) de movimentos exteriores ao poder ou sistema institucional democrático, sendo abundantemente praticados por forças e personalidades que o representam. Tal como as redes sociais também são abundantemente usadas (e abusadas) por estes, num exercício de demagogia e hipocrisia que, também aqui, esconde o rabo mas expõe o gato. A sistemática confusão entre “popular” e “populista” – uma fronteira ténue por natureza – é uma evidência.
Resumindo e concluindo, não deve haver qualquer dúvida de que a democracia requer regulação, autoridade e responsabilização, justificando-se – e até impondo-se – limitar a liberdade de uns quando ela ameaça a legítima liberdade de outros (qual é o seu escopo?). Este é o bico desenvenenado do pau. Democracia, num Estado de Direito, também é ordem, mas não a ordem unilateral do “direitinho” e “respeitinho” como pretendem as mentalidades e interesses retrógrados e autoritários de certos incumbentes. O segredo está em, envolvendo os cidadãos, encontrar um equilíbrio justo, sem envenenar a democracia.