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Um triângulo desamoroso

O projeto de construção de mais um edifício multiusos no centro da cidade faz parte dos grandes dossiers de Abrantes, a que dedicarei uma das minhas próximas crónicas. Pretende-se erguê-lo sobre as ruínas do atual edifício histórico do Mercado Municipal, negligenciado há décadas e deixado completamente ao abandono há cerca de 8 anos, pela maioria autárquica socialista. O executivo municipal designa o projeto por “requalificação do antigo mercado diário”, uma falácia que suscita indignação e vergonha alheia. Apresentou-o há cerca de uma semana na Assembleia Municipal de Abrantes, sem direito a intervenções e sem ter ido a Reunião de Câmara, numa clara manobra de propaganda e manipulação.

Encerrado pela ASAE em 2010, sem apelo nem agravo – por que razão foi deixado sem manutenção, apesar dos avisos da autoridade de segurança alimentar e económica, e não foram corrigidos os reparos desta, aproveitando-se os prazos dados? – o berço do antigo “mercado coberto”, inaugurado em 1933 e requalificado em 1951 sob orientação técnica do arquiteto modernista António Varela e do engenheiro-poeta Jorge de Sena, há muito que devia ter sido classificado como património municipal, como insistentemente solicitaram, ao longo de anos, várias forças políticas, deputados municipais e cidadãos peticionários.

Em vez disso, as sucessivas maiorias absolutas PS escolheram condenar o edifício à demolição, inscrevendo-a mesmo no PUA – Plano de Urbanização de Abrantes, com força normativa, numa sessão tumultuosa em que a bancada do PSD acusou a então Presidente da Câmara Maria do Céu Antunes [Albuquerque] (2009-2019) de “prepotência, teimosia, capricho e desrespeito” e de “cometer sucessivos atentados contra a identidade da cidade e do património dos abrantinos”. Esta e outras “medalhas” constituíram o passaporte político que possibilitou a posterior ascensão da edil dentro do PS, chegando a Secretária de Estado do Desenvolvimento Regional (2019) e a Ministra da Agricultura [e da Alimentação] (2019-2024).

Simultaneamente, a maioria PS construiu de raiz e inaugurou em 2015 um edifício multiusos em altura (onde antes funcionou a Garagem dos Claras), derrubando parte da icónica Muralha de Abrantes, o qual nunca se revelou apropriado para mercado diário –não atrai vendedores nem clientes, só vende ao sábado e o povo chama-lhe “bunker”, “mausoléu” ou “mamarracho” – mas que o Município tratou de batizar como Mercado Municipal de Abrantes e começar a celebrar os seus recentes aniversários. Ao contrário do que se diz, nunca ganhou qualquer prémio de arquitetura e a sua conceção foi, até, considerada “inusual e incómoda” pelo júri do Prémio Europeu Mies van der Rohe 2017, a que se havia candidatado.

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Em janeiro de 2019, alguns cidadãos mais ativos criaram o grupo informal dos Amigos do Mercado de Abrantes – um fórum de partilha de informação e debate público, debate esse cada vez mais escasso e malvisto pelo poder autárquico em Abrantes – o qual promoveu, em 1 de julho de 2019, uma manifestação florida exigindo a preservação do edifício histórico do Mercado e o regresso do mercado diário ao mesmo, depois de reabilitado. O Presidente da Câmara, Manuel Jorge Valamatos, considerou-a “extemporânea” e garantiu que “ninguém iria derrubar mercado nenhum”.

Seguiram-se inúmeros apelos, cartas-abertas, emails, vídeos, artigos de opinião, entrevistas, manifestações e outras iniciativas, a que o autarca nunca deu resposta séria, preferindo hostilizar a cidadania livre e participativa, apelidando-a de “desordeira, populista e oportunista”. Chegou, até, em Reunião de Câmara, a ameaçar com polícia quem afixou um pequeno cartaz – logo feito desaparecer à socapa – a dar os parabéns ao Mercado pelo seu 90º Aniversário.

O projeto que o executivo designa por “requalificação do antigo mercado diário” constitui uma falácia porque serão derrubadas (ou demolidas) as duas fachadas do edifício histórico do Mercado e os dois painéis de azulejos com valor artístico e patrimonial. O chefe do executivo municipal tem evoluído na “engenharia linguística”, passando da promessa de os preservar para a atual promessa de que será mantida a “traça” (e não as “fachadas”) e respeitado o demagógico e jactante eufemismo de “espírito do lugar”. Acresce que a localização e o custo do novo multiusos são fortemente questionáveis, e o seu benefício e utilidade mais do que duvidosos.

Por outro lado, o projeto selecionado entre os 53 que responderam ao concurso internacional organizado, divulgado e assessorado pela Ordem dos Arquitetos (SRLVT), foi escolhido por um júri constituído, nomeado e presidido pelo próprio Presidente da Câmara Municipal de Abrantes, o qual tratou de garantir que a maioria dos membros lhe fossem afetos, uma possibilidade eventualmente legal, mas que muitos cidadãos consideram tecnicamente insensato e eticamente reprovável. Abrantes precisa, inquestionavelmente, de um pavilhão multiusos (que não tem) para a realização de grandes eventos económicos, desportivos, culturais e musicais, mas o proposto não serve os fins necessários e desejados.

Temos, assim, um complicado triângulo desamoroso: um edifício histórico de onde o Mercado nunca devia ter saído, um edifício inapropriado para onde o Mercado nunca devia ter ido, e um projetado edifício, custoso, mal localizado e previsivelmente inútil, que nada irá acrescentar ao que existe e que ainda irá usurpar o direito histórico de propriedade do povo abrantino sobre o terreno e o edificado do antigo “mercado coberto”. A maioria PS insiste teimosamente nos seus intentos enquanto os Amigos do Mercado de Abrantes e toda a oposição autárquica sugerem a realização de um referendo local.

Ninguém percebe a obstinação dos eleitos socialistas, designadamente dos seus principais dirigentes, sabendo-se que muitos cidadãos simpatizantes do PS estão contra a intenção de demolir o berço histórico do Mercado, edifício com valor patrimonial. Todos perguntam: A quem interessa o projeto de construção deste edifício multiusos no centro da cidade, a erguer sobre as ruínas do antigo Mercado? As respostas não satisfazem e o intuito é um mistério. Do que se tem a certeza é que as próximas gerações não perdoarão o erro de fazer desaparecer o icónico edifício do Mercado Municipal de Abrantes, um atentando à História, ao Património, à Memória e à Identidade abrantina.

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José Nascimento
José Nascimento
Tem 68 anos e vive na aldeia de Vale de Zebrinho (Abrantes). Reformado do ensino superior, onde lecionou disciplinas de gestão e psicologia social, dedica o seu tempo à atividade cívica e autárquica. É, também, membro do núcleo executivo do CEHLA – Centro de Estudos de História Local de Abrantes (editor da Revista Zahara). Interessa-se pelas dinâmicas políticas e sociais locais e globais, designadamente pelos processos de participação e decisão democráticos.

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