Muita gente da cidade não sabe que uma alface demora perto de dois meses a fazer-se… Diz a única mulher agricultora entre uma trintena de outros, há 20 anos no extenso vale do rio Lizandro agora “vigiado” pelo colorido guarda-rios do artista plástico Bordalo II.
De rosto curtido pelo sol – “aqui não há cremes!” – e mãos grossas pela agrura da terra, Lourdes Moreira, 57 anos, vive a cerca de quinze quilómetros daquela escultura “Guardião do Lizandro”, erguido no leito do rio, perto da capela da Senhora do Ó e da antiga ponte romana, que segundo os estudos de Manuel Gandra, outrora foi cais de transporte do carvão para Lisboa, originando o nome da freguesia da Carvoeira onde se insere.
Mulher determinada, Lourdes que é natural da freguesia de Trancoso, Guarda, teve uma infância austera e sempre ligada à terra, ainda que tivesse sido cuidadora de crianças e de idosos e ainda vendedora com banca na rua. Hoje viúva, criou o seu mundo numa casa precária na encosta da extensa várzea onde trabalha uma extensão de terra, o que, segundo a própria, equivale a quatro campos de futebol: cenouras, alfaces, espinafres, couves, morangos, nabos, feijão verde, milho, entre tantos outros, regalam a nossa vista.
A agricultora possui telemóvel “simples, só par receber e fazer chamadas” e, ainda que a sua escolaridade básica lhe tenha dado “só oitenta por cento” na escrita e na leitura, gosta de ver o mundo pela televisão: “Estamos à beira de uma guerra mundial, sabe?”. É crítica do modernismo social atual no que considera uma vida de “excesso de luxo e vaidade”, mas também desumanidade. “Há gente muito ruim!”. Em seu redor, circula a cadela “Chornuda”, de “olho na dona”, protetora e pronta a atacar mal percecione alguma altercação.
Subsídios? Só para alguns!
Lourdes precisa da horta como alimento da sua pessoa, mais do que a sua sobrevivência, ainda que apenas receba uma pensão de viuvez de 175 euros.
Quanto a subsídios de apoio para a agricultura, Lourdes diz não ter nada, pois “recorrer a subsídios é uma dor de cabeça pelas burocracias e documentos exigidos”. Acaba por desistir.
“Se não fosse a horta e os produtos que vendo não sei como seria” diz a mulher que sente paixão pelo trabalho na terra: “temos de sentir as coisas” e “saber o que comemos”, comenta Lourdes, orgulhando-se de ter dado aos seus três filhos o décimo segundo ano e de ter dois dos 3 netos na universidade.
“Os agricultores ganham quase nada. Tenho de comprar as plantas e as paletes. É chapa ganha chapa gasta” diz a Lourdes que às 6 da manhã já está no meio dos legumes, mondando-os das ervas daninhas, regando, zelando pelo seu crescimento. Os produtos são vendidos a intermediários que os colocam no mercado. “Trabalho de sol a sol. Todos os dias estou aqui com a sachadeira. Quando preciso de lavrar o terreno contrato um trator” conta-nos.
Neste vale produtivo que se estima numa extensão de 30 quilómetros e onde trabalham cerca de três dezenas de agricultores, são visíveis ao longo da margem do rio, campos de trigo e de milho, hortas maiores e menores sistemas de rega mecânica e manual. Alguns fazem cultura intensiva e alimentando a cadeia comercial. Outros, como o Carlos Simões, um gestor de materiais pesados agora reformado e que encontramos num outro ponto do vale, a sachar a batata-doce, fazem-no “para distrair a cabeça, exercitar o corpo e fomentar o convívio”. Há sempre um amigo que diz “Eh pá tens aí uma alface?”. Simões acrescenta que, como ele “há aqui muitas pessoas que são de outras profissões: sargentos da marinha, polícias… gente de idades acima dos 50”. A partir do Forte do Zambujal, concelho de Mafra, património que integra a segunda das chamadas Linhas de Torres, quando das invasões francesas, pode avistar-se o “patchwork” das diferentes hortas ou manta de retalhos em tons verdes e dourados, consoante o crescimento dos vegetais, de extrema beleza e que nos evoca a importância da Terra.
O vale ganha mais vida aos fins de semana, com muitas pessoas a fazerem caminhadas ou circuitos de bicicleta. Numa pesquisa pela internet pode verificar-se as muitas empresas e grupos que organizam trilhos agrícolas, pagos, atravessando as densas matas e florestas de carvalhos e sobreiros, percorrendo um dos vales mais bonitos da região de Mafra, com as suas diferentes texturas e paisagens.
Requalificação do Vale à Foz do Lizandro
Integrado na bacia hidrográfica das ribeiras do Oeste, o Vale do Lizandro, por onde atravessa o maior rio do concelho de Mafra, com 57 quilómetros de extensão e que o une com o Oceano Atlântico, gerando a única praia fluvial da Foz do Lizandro, está a ser sujeito a uma obra de requalificação.
A tentativa de rentabilização dos terrenos tem associado diversos problemas ecológicos, já identificados, colocando em risco as espécies autóctones.
A poluição do leito do rio e a degradação da vegetação assumem-se como duas das maiores ameaças à biodiversidade local que o programa em curso tenta solucionar. Paralelamente, a Câmara Municipal de Mafra, no âmbito de uma candidatura ao Fundo Ambiental, tem vindo a promover a remoção dos resíduos no leito do rio, remoção das canas através de herbicidas e reconstrução das margens.
Para minimizar os impactes negativos associados aos fenómenos climáticos extremos, nomeadamente cheias, foi construída, em 2015, a Estação de Tratamento de Águas Residuais da Foz do Lizandro, que melhorou as condições ecológicas deste ecossistema ribeirinho.