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Marmelada e o Lince

Havia um lascivo fascínio pela capa de açúcar que vinha ao de cima, na marmelada da minha avó paterna. Era aquela posta numas terrinas fundas, guardadas no pico do Everest: a prateleira mais alta da dispensa da casa. A marmelada vinha poMarmelada e o Lincer estes tempos e cheirava sempre por toda a casa, pela varanda, pelas ruas – mal saia de casa de meus pais no toyota azul claro já sentia o fumegar marmeleiro. A minha avó punha um papel vegetal em cima, que devia ser para qualquer coisa muito útil. Para mim era uma fechadura inadmissível.

Foto: D.R.

O roubo da marmelada estava impedido a sete chaves de papel. O que valia, naqueles tempos, é que nem sempre o meu avô confiava nas prateleiras que, desconfio, ele mesmo fez. Aliás, dele herdei o enorme talento para a bricolage. Por isso as terrinas brancas pesavam nas prateleiras qual edição encadernada do Guerra e Paz, abaulando a solidez das tábuas aquela alquimia de marmelo e açúcar.

Vinham então parar cá abaixo, à bancada, as terrinas sossegaditas, mas sedutoras. “Ainda estão quentes”, justificava a minha avó: “Não ponhas já, ai!”, bradava ao meu avô, naquela voz de comando que o Manuel nem imaginava poder desobedecer.

No quarto das minhas tias eu juro que ouvia, do poster, o lince dizer: “vai lá… rapaz… vai lá… só assim me salvas na Malcata, se meteres a colher…”. Eu ia, que a um lince de papel nada se recusa.

Há anos que não vejo o papel vegetal a fechar as terrinas, meio húmido e transparente, a levantar nas pontas, o círculo irregular cortado à tesoura, o som do descolar crepitante, vegetal, do doce. Mas tenho aqui mesmo, aqui nesta parte da memória, todo o palato necessário para a saudade enorme. Mais deles, da minha Mimi e do meu Almeida, do que do fruto a ferver.

Ingrato, nunca dei colher da marmelada ao Lince.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Jornalista, autor, (pré-agricultor).

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