Uma nova descoberta arqueológica no sítio de Kach Kouch, no norte de Marrocos, está a desafiar antigas narrativas sobre a história do Magrebe. Acreditava-se há muito que esta região do noroeste africano teria sido praticamente desabitada até à chegada dos fenícios, por volta de 800 a.C. No entanto, as escavações revelaram a existência de povoações agrícolas estáveis ali instaladas já na Idade do Bronze, há mais de 3000 anos

A investigação, conduzida por uma equipa de jovens arqueólogos do Instituto Nacional de Arqueologia de Marrocos, mostra que, ao contrário do que se pensava, o Magrebe teve um papel ativo nas dinâmicas culturais e económicas do Mediterrâneo muito antes das influências externas. Esta descoberta não só preenche uma lacuna histórica como também desmonta visões coloniais que descreveram a região como isolada e “civilizada” apenas com a chegada de povos estrangeiros.
Um passado mais antigo do que se pensava
Embora o sítio arqueológico de Kach Kouch tenha sido identificado em 1988 e escavado nos anos 90, foi apenas nas campanhas mais recentes, realizadas em 2021 e 2022, que os investigadores obtiveram dados suficientes para reformular a cronologia do local. Com o auxílio de tecnologias avançadas — como drones, GPS diferencial e modelos 3D — e protocolos rigorosos de coleta de amostras, foi possível identificar restos de sementes fossilizadas, carvão vegetal e outros materiais orgânicos.
As análises laboratoriais, incluindo datação por radiocarbono, revelaram três fases de ocupação humana entre 2200 e 600 a.C., com especial destaque para o período entre 1300 e 600 a.C., quando se consolidou uma comunidade agrícola e pecuária organizada.
Agricultura, arquitetura e o mais antigo bronze do Norte de África
Durante este período, os habitantes de Kach Kouch viviam em casas circulares construídas com a técnica de pau a pique e armazenavam seus produtos agrícolas em silos escavados na rocha. Plantavam trigo, cevada e leguminosas e criavam gado bovino, caprino, ovino e suíno. Ferramentas de pedra lascada, cerâmicas decoradas e até mesmo o objeto de bronze mais antigo já encontrado no Norte de África (fora do Egito) fazem parte dos achados.
O vestígio metálico — um fragmento de bronze produzido por moldagem — demonstra o conhecimento de técnicas metalúrgicas bem antes do contato com os fenícios, o que reforça a autonomia cultural e tecnológica destas comunidades.
Interação com os fenícios e mudanças culturais
Com a chegada dos fenícios à região, por volta dos séculos VIII e VII a.C., os habitantes de Kach Kouch começaram a adotar novas práticas culturais, sem romper com as tradições locais. A convivência entre casas circulares tradicionais e construções quadradas de pedra e pau a pique — influenciadas pela arquitetura fenícia — revela uma fusão de culturas.
Passaram a cultivar uvas e azeitonas, utilizar cerâmicas feitas à roda e integrar ferramentas de ferro no cotidiano, demonstrando abertura às inovações trazidas pelos povos do Oriente. Apesar disso, a continuidade cultural e material sugere que não houve dominação, mas sim interação.
Por volta de 600 a.C., o povoado foi pacificamente abandonado — possivelmente devido a transformações sociais e econômicas —, com os habitantes migrando para novas comunidades nas proximidades.
Uma nova visão para o passado africano
Os achados em Kach Kouch não só ampliam a compreensão da pré-história do Norte de África, como também colocam o Magrebe de volta no mapa das grandes civilizações mediterrânicas da Antiguidade. As descobertas desconstroem mitos de uma África passiva e desabitada, reafirmando a longa e rica história de seus povos originários.
Mais do que uma escavação bem-sucedida, trata-se de um momento decisivo para a arqueologia africana. Um convite a rever o passado com um olhar mais inclusivo e preciso — onde o Norte de África deixa de ser apenas cenário e passa a ser protagonista.