Obra com 119 entrevistas do músico e ativista chega às livrarias pela mão da Tinta da China
Cinco décadas de reflexões, ideias e memórias de José Mário Branco chegam hoje às estantes. A editora Tinta da China publicou esta terça-feira uma compilação de 119 entrevistas concedidas pelo músico entre 1970 e 2019, oferecendo um retrato íntimo do seu pensamento sobre arte, intervenção política e sociedade portuguesa.
“É quase como se o Zé Mário tivesse construído, sem saber, a sua autobiografia pública”, partilha António Branco, um dos três investigadores responsáveis pela organização da obra. O livro, intitulado José Mário Branco — Entrevistas para a Imprensa 1970-2019, começa com uma conversa publicada no Comércio do Funchal e encerra com um diálogo na Notícias FCSH, pouco antes do seu falecimento.
O etnomusicólogo Hugo Castro, também envolvido no projeto, explica que a seleção privilegiou material escrito, deixando de fora registos audiovisuais por razões práticas. “Houve um trabalho minucioso de pesquisa e contextualização de cada entrevista”, acrescenta.
Um arquivo para o futuro
Este livro é somente a ponta do ‘iceberg’ de um ambicioso projeto académico iniciado em 2018. Ricardo Andrade, investigador principal, revela que a equipa já catalogou mais de 20 mil documentos do espólio do artista, atualmente depositado na Universidade Nova de Lisboa.
“Digitalizámos pastas organizadas pelo próprio José Mário, desde partituras manuscritas até ficheiros informáticos dos primórdios da década de 1980”, conta Andrade. Uma parte deste precioso arquivo já pode ser consultada ‘online’, concentrando-se sobretudo na produção musical, mas há planos para uma plataforma digital mais abrangente.
Apesar da sua discografia oficial ser relativamente modesta, o arquivo guarda tesouros por descobrir. “Existem dezenas de inéditos, desde composições para peças teatrais até versões experimentais gravadas durante o seu exílio em França”, revela Andrade. “Algumas maquetas são verdadeiras janelas para o seu método criativo, mostrando como as canções evoluíam ao longo do tempo”.
António Branco acredita que só compreenderemos verdadeiramente a dimensão do legado de José Mário Branco quando “toda a documentação estiver acessível ao público, sem comprometer a preservação física dos originais”.
Mais do que um músico
Figura central da cultura portuguesa após a Revolução dos Cravos, José Mário Branco deixou marca como compositor, instrumentista, produtor (trabalhando com nomes como Zeca Afonso e Sérgio Godinho) e incansável dinamizador cultural. Falecido em 2019, o seu contributo estendeu-se da música ao teatro e cinema.
“Ele encarava a arte como ferramenta de transformação da sociedade, nunca como mero entretenimento”, observa Maria do Carmo Piçarra, professora de Estudos Culturais na Universidade de Coimbra, embora não esteja envolvida no projeto.
Outros capítulos por abrir
Para além da base de dados em desenvolvimento, a equipa de investigação considera publicar futuramente um volume dedicado aos textos escritos pelo próprio músico e uma compilação audiovisual. “São projetos ambiciosos que poderão ocupar-nos a próxima década”, admite Hugo Castro.
Enquanto isso, este livro de entrevistas serve como bússola para navegar no universo intelectual de quem, como escreveu Manuel Gusmão, “cantou as fraturas do nosso tempo com a precisão de um ourives e a força de um revolucionário”.
Num país onde a memória cultural tende a desvanecer-se rapidamente, iniciativas como esta não funcionam como simples homenagem póstuma, mas como convite à redescoberta de uma das vozes mais autênticas e desafiadoras da cultura portuguesa. À medida que o arquivo ganha forma digital, cumpre-se um desejo do próprio José Mário Branco, que sempre defendeu que preservar o passado é semear para um futuro que talvez não cheguemos a ver, mas que outros certamente habitarão.