Apesar da vasta produção de lã em território nacional, a maior parte da lã ovina portuguesa está a ser descartada sem qualquer uso. Criadores denunciam o colapso de um sector com potencial milionário, ignorado por políticas públicas.
Lã portuguesa vai parar ao lixo ou ao subsolo
Em plena época de tosquias, a lã de ovelha portuguesa — outrora um activo estratégico da economia rural — está hoje a ser enterrada em valas ou lançada em aterros, sem qualquer processamento ou destino comercial. A situação, que se repete há vários anos, agravou-se em 2024 com o aumento dos custos logísticos e a ausência de compradores.
De Norte a Sul, os produtores ouvidos pelo nosso jornal relatam o mesmo cenário: toneladas de lã acumulam-se nas explorações, sem escoamento ou utilidade, obrigando os criadores a recorrer à incineração ou ao enterro, com custos ambientais e económicos preocupantes.
Segundo a Associação Nacional de Criadores de Ovinos (ANCO), estima-se que, só no último ano, mais de 5 000 toneladas de lã tenham sido descartadas, equivalendo a cerca de 10 milhões de euros de valor de mercado perdido.
Falta de estratégia e indústria ausente
Portugal tem cerca de 2,2 milhões de ovinos, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Cada ovelha produz entre dois a quatro quilos de lã por ano. Contudo, a indústria nacional de transformação praticamente desapareceu.
«Já ninguém quer comprar. Nem para almofadas, nem para isolamento. A lã ficou um passivo», denuncia Manuel Sequeira, criador na zona de Mértola, onde o gado campa livremente e produz lã de qualidade. «Pago pela tosquia, pago para me livrar da lã. E não recebo nada em troca», acrescenta.
Em 2023, o Ministério da Agricultura anunciou a criação de um grupo de trabalho para avaliar o potencial de valorização da lã portuguesa. No entanto, os produtores garantem que nada mudou no terreno.
País importa o que desperdiça
Enquanto a lã nacional é enterrada, Portugal continua a importar produtos têxteis feitos com lã estrangeira, muitas vezes processada em países com custos ambientais e laborais baixos.
«É uma contradição gritante», afirma Helena Nunes, investigadora do Instituto Politécnico de Bragança, especializada em fibras naturais. «Temos matéria-prima abundante e sustentável, mas não existe uma fileira organizada para o seu aproveitamento. Falta investimento e visão».
Em Espanha, iniciativas regionais como a valorização da lã merina na Estremadura têm conseguido relançar o sector, com apoio europeu. Portugal continua sem plano nacional.
Impacto ambiental e risco sanitário
O descarte descontrolado da lã levanta também preocupações ecológicas. A lã não é biodegradável em ambientes fechados, podendo contaminar solos e cursos de água com resíduos químicos utilizados na limpeza e armazenamento.
Além disso, a acumulação em zonas de criação de gado pode potenciar focos de pragas, dificultar a gestão sanitária dos rebanhos e agravar os riscos de incêndio.
A Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) admite estar «a acompanhar a situação» e apela à responsabilidade dos produtores, mas estes exigem soluções estruturais.
Valorizar a lã para relançar o mundo rural
Organizações como a ANCO e a Associação para o Desenvolvimento da Raça Merina querem ver criada uma plataforma nacional de escoamento da lã, com incentivos para a transformação local e campanhas de valorização.
«A lã portuguesa tem qualidade, tem tradição e tem mercado. O que falta é uma política pública coerente», defende João Ramos, técnico agrícola na Beira Interior. «É inaceitável que se trate como lixo aquilo que pode gerar riqueza e sustentabilidade para o interior».
O Governo mantém silêncio sobre novas medidas, mas a pressão cresce à medida que o país assiste, ano após ano, ao desperdício de um dos seus recursos mais antigos e promissores.