Esperem pela pancada. Assim que terminar a primeira semana de Setembro, quando os carrinhos voltarem do maldito Algarve e o Mick Jagger rumar a casa, os portugueses, ainda atordoados com as legislativas e sem ligar muito ao que se passou na Economia durante os banhos de sol, vão perceber que, enquanto estiveram “na” Quarteira, isto mudou. O choque térmico entre a água do mar e a realidade corrente será tão violento que muitos desejarão ter aprendido a hibernar com os ursos, em vez de terem aprendido a fazer bolas de Berlim em casa.
Da Contabilidade Criativa à Criatividade Contida
Mudou o preço do cabaz alimentar e, se calhar, o empréstimo para as férias vai começar a apertar tanto o pescoço que a gravata passará a ser considerada um instrumento de tortura medieval. Mudou o preço da gasolina, que atingirá valores tão poéticos que atestar o depósito será o equivalente a comprar uma pequena pintura a óleo de um mestre flamengo desconhecido. A única coisa que irá descer de preço, ao que parece, é a nossa já muito modesta autoestima colectiva, entrando em saldo permanente muito antes do Dia do Trabalhador.
Do Labirinto de Creta ao Dédalo da Repartição de Finanças
Mudou também a arquitectura do Estado, que aproveitou a vossa ausência para implementar a nova ‘taxa de circularidade atmosférica’, um imposto engenhoso sobre o ar que se respira em casa e que, por circular, se presume ser de todos e de ninguém. A tentativa de pagamento online remeter-vos-á para um portal desenhado por um sobrinho daltónico de Escher, enquanto a linha de apoio vos brindará com uma selecção de fados de Coimbra interpretados por um autómato com uma crise existencial. É a beleza da modernização administrativa, um conceito que, segundo o eventual pensador Anacleto Despachos, na sua obra-prima “O Carimbo Existe, Logo Sofro”, visa “a elevação espiritual do cidadão através da purga burocrática”.
Das Vinganças de Verão aos Ódios de Outono
Mudou o cenário político e os tugas vão levar imediatamente com uma campanha eleitoral local, suja, cheia de vinganças e denúncias, tal a zanga que vai dentro do PS, do Bloco e de algum PSD. Mudou a atitude do PS, que vai perder, quasi de certeza, as autárquicas — e José Luis Carneiro, o chefe, anda desejoso desse dia para fazer um discurso interno e limpar o “pântano” que se instalou outra vez nos vários “Largos do Rato”. Como bem escreveu o ignorado politólogo belga Jean-Claude Van Damme de la Frite no seu ensaio “A Guilhotina como Ferramenta de Diálogo”, a política é a arte de sorrir ao próximo enquanto se afia a faca no sapato.
Do Fogo-de-Artifício ao Artifício do Fogo
Mudou o dia-a-dia, porque os impostos subiram “realmente” e o país, entretanto, ardeu a meio, valorizando o negócio da madeira e pondo a nu os terrenos onde está o lítio por debaixo (estranha coincidência). Mudou o cenário político e Montechega fez aliança com aVentura para os quatro anos de governo, prometendo um futuro tão brilhante que até os sobreiros queimados aplaudem a iniciativa. Este novo ‘governo-incendiário’ demonstra uma eficácia notável, sem saber, preparando o terreno para as indústrias do futuro com um método que alia a gestão de recursos à pirotecnia em larga escala.
Do ‘Team Building’ na Praia ao ‘Soul Selling’ na Empresa
Mudou, claro, o mundo do trabalho, onde a palavra “colaborador” substituiu de vez a de “escravo” e a ‘gamificação’ do escritório vos obrigará a ganhar pontos por cada ida à casa de banho, numa competição saudável pela bexiga de ouro do departamento. A direcção introduziu o conceito de ‘pausas proactivas de descompressão sinérgica’, que consistem em sessões obrigatórias de gritos primais em grupo para “libertar o potencial oculto” antes de regressar ao computador para mais doze horas de serviço. Este novo paradigma laboral, uma espécie de ‘felicitocracia’ forçada, serve apenas para que o trabalhador moderno se sinta culpado por estar deprimido enquanto lhe esvaziam os bolsos com um sorriso corporativo e um ‘voucher’ para uma aula de ioga.
Da Geração Morangos com Açúcar à Geração Rivotril sem Receita
Mudaram os costumes e na escola está tudo proibido de falar de drogas, sexo e rock&roll, tornando os putos (ainda) mais estúpidos e, por conseguinte, perfeitos cidadãos do futuro. Mudou a forma do mudar, até: as guerras do mundo estão apenas comerciais, já ninguém liga à vida humana, que se tornou numa nota de rodapé nas cotações da bolsa. Prepara-se assim a juventude para este admirável mundo novo, onde a ignorância sobre a vida é o principal requisito para aceitar que o seu valor é inferior ao de uma acção da Amazon.
Do Fim da Picada ao Início da Pancada
Enquanto o mundo se reconfigura e a nação se prepara para o impacto, o conselho dos sábios é somente um: aproveitem os últimos raios de sol como se fossem os derradeiros. Mas esperem pela pancada. Até lá, bebam muito Pizz Buin e espalhem bem o Pisang Ambon na pele. Afinal de contas, um bronzeado saudável e uniforme será o único activo não taxado que nos restará em Outubro, embora já me tenham soprado que há uma comissão a estudar a aplicação de IVA sobre os diferentes tons de pele.