Mais de 222 mil hectares ardidos em 2025, um recorde desde 2017. Incêndios de grandes dimensões nos distritos de Castelo Branco e Guarda mobilizam milhares de operacionais e deixam um rasto de destruição e luto.
A 20 de Agosto de 2025, o mapa de Portugal continental continua pintado de vermelho e preto. O país enfrenta uma das mais devastadoras épocas de incêndios dos últimos anos, com um rasto de três vítimas mortais, dezenas de feridos e uma área ardida que já ultrapassa os 222 mil hectares, um valor que superou, em pleno Verão, a totalidade de 2024. No centro da crise, dois distritos em particular, Castelo Branco e Guarda, combatem focos de grande dimensão que se propagam sem controlo há vários dias, com a Proteção Civil a manter o dispositivo no terreno em estado de prontidão especial de nível quatro, a fim de garantir a resposta mais eficaz possível. A fúria das chamas, potenciada por ventos convectivos e um calor persistente, tem ameaçado zonas urbanas, o Parque Natural da Serra da Estrela e a vida de bombeiros e populares.
O Cenário em Castelo Branco: A Fúria do Fogo de Arganil
O incêndio que lavra no distrito de Castelo Branco não é um evento isolado, mas sim a manifestação mais dramática de um complexo de grandes dimensões com origem no distrito vizinho de Coimbra, revelando a interconexão das frentes de fogo a nível regional.
A Progressão de uma Tragédia Anunciada
O foco de Castelo Branco tem a sua origem identificada no incêndio que deflagrou em Arganil, no distrito de Coimbra, no dia 13 de Agosto. Este incêndio, que se tornou um dos mais preocupantes do país, progrediu de forma incontrolável, alastrando-se a múltiplos concelhos. As chamas estenderam-se aos concelhos do Fundão, Covilhã e o próprio Castelo Branco, todos no distrito de Castelo Branco, e também a concelhos do distrito da Guarda, como Seia. O presidente da Câmara do Fundão, Paulo Fernandes, revelou que a situação se “agravou muitíssimo ao princípio da tarde” de 20 de Agosto, sobretudo na frente de fogo em direção a Castelo Novo, e que a frente de Souto da Casa se encontrava descontrolada.
A propagação inter-distrital do fogo de Arganil demonstra a falácia de encarar incêndios de grande dimensão como problemas puramente locais, sublinhando a necessidade de uma resposta e coordenação a nível regional e nacional. O facto de o incêndio ter entrado em distritos vizinhos, atingindo a Guarda e Castelo Branco, evidencia o poder de propagação das chamas em cenários de condições meteorológicas extremas, impulsionadas por ventos fortes e o calor. A menção de que a situação se agravou sublinha a dinâmica volátil do fogo, onde a janela temporal para a contenção é estreita e a resposta operacional deve ser contínua e adaptável.
Danos Materiais e Sociais: A Perda de uma Vida Inteira
No rasto de destruição, o incêndio não poupou o património. No concelho de Castelo Branco, uma casa de primeira habitação foi totalmente consumida pelo fogo em Casal da Serra, uma localidade na freguesia de São Vicente da Beira. A dimensão humana da tragédia é sublinhada pelo relato de que uma idosa de 80 anos ficou desalojada após perder a sua casa. Esta história transforma uma estatística fria numa tragédia pessoal, um elemento crucial para a reportagem jornalística. Este tipo de perda material, que representa a memória e a vida de uma família, tem um impacto psicológico e social que transcende a avaliação puramente económica e demonstra a vulnerabilidade das comunidades rurais mais expostas.
Condicionamentos e Resposta Operacional
A gravidade do quadro em Castelo Branco levou à activação do Plano Municipal de Emergência e Protecção Civil, uma medida de exceção que permite uma mobilização reforçada de recursos e coordenação de esforços. A resposta operacional no terreno é intensa, com um “esforço muito significativo” direccionado à frente de incêndio em Unhais da Serra, Fundão, que também tem origem em Arganil. Contudo, o presidente da Câmara do Fundão expressou preocupação com o aumento do risco na serra da Gardunha e lamentou a falta de continuidade de meios aéreos durante a tarde, classificando a sua presença como “preciosa” para o combate. As chamas levaram ainda à interdição de estradas vitais para a região, como a Linha da Beira Baixa, a A23 e a EN18, cortadas desde as 18:00.
O Calvário na Guarda: Da Serra da Estrela ao Sabugal
O distrito da Guarda continua a ser um dos pontos mais quentes no mapa dos incêndios, com focos de alta complexidade que exigem uma mobilização massiva de meios e colocam em perigo o património natural e humano.
A Ameaça ao Parque Natural da Serra da Estrela
O incêndio em Seia é um dos focos de maior preocupação. Com origem no fogo de Arganil/Piódão , as chamas ganharam intensidade durante a tarde de 20 de Agosto e progrediram de forma perigosa em direcção ao Parque Natural da Serra da Estrela. O presidente da Câmara de Seia, Luciano Ribeiro, confirmou que as chamas chegaram às partes mais altas do Parque, “tendo chegado também às partes mais altas do Parque Natural”, e que ao final da tarde o fogo “estava nessa encosta a começar a lamber o planalto da Torre”, o ponto mais elevado de Portugal continental. Esta progressão levou à reposição do confinamento na localidade de Alvoco da Serra, embora o autarca tenha notado que a aldeia não estava em perigo iminente. A chegada do fogo à Serra da Estrela simboliza a ameaça ambiental e patrimonial do flagelo. É o avanço das chamas sobre um dos ecossistemas mais importantes e emblemáticos do país, o que representa uma perda de biodiversidade e degradação da paisagem que ultrapassa os números de hectares ardidos.
Feridos e Perdas no Sabugal
O incêndio no concelho do Sabugal também se propagou para o distrito de Castelo Branco, entrando no município de Penamacor. Este fogo foi o cenário de um dos ferimentos mais graves da época de incêndios. Um operacional de 45 anos da Afocelca, uma empresa de protecção florestal, sofreu queimaduras em 75% da área corporal. O seu quadro clínico foi descrito como “muito instável”, com a gravidade agravada por comorbidades pré-existentes. A vítima foi estabilizada no local e transportada de helicóptero do INEM para o Hospital de São João, no Porto, um centro de referência para grandes queimados. O incidente no Sabugal destaca o perigo extremo a que os combatentes estão sujeitos, ilustrando a vulnerabilidade do dispositivo no terreno.
Outros Focos Relevantes
Além do cenário na Serra da Estrela e no Sabugal, o distrito da Guarda tem outros focos activos que merecem atenção. Segundo dados de fogos.pt, o incêndio em Figueira de Castelo Rodrigo, em curso, mobiliza 167 operacionais, 41 veículos e nenhum meio aéreo. A Lusa reportou que o incêndio em Trancoso , que entrou em resolução, tem uma área ardida de 49.324 hectares. Este fogo juntou-se ao de Sátão, formando um complexo que afectou 11 municípios dos distritos de Viseu e da Guarda, ficando com uma área ardida que fica apenas atrás do maior incêndio de sempre desde que há registos em Portugal, que ocorreu na Lousã, em 2017.
O Balanço Nacional: Uma Contagem de Perdas e a Resposta do Estado
A dimensão nacional da crise é alarmante, ultrapassando os números de anos recentes e assumindo um impacto económico e social profundo. A análise das estatísticas e da resposta do Estado revela um cenário de grande preocupação e desafios persistentes.
Um Cenário de Grande Dimensão
Num balanço da ANEPC às 20h00, cinco incêndios eram considerados os mais preocupantes no país, mobilizando 2.775 operacionais, apoiados por 896 veículos e 29 meios aéreos. O ano de 2025 já é um dos mais trágicos em termos de área ardida. Dados provisórios da Protecção Civil indicam que, até 20 de Agosto, arderam mais de 222 mil hectares. Este valor já é superior à área ardida em todo o ano de 2024. Relatórios do sistema europeu Copernicus apontam para uma área de 216.214 hectares até 19 de Agosto, o que corresponde a 24% de toda a área ardida na União Europeia e a mais de 2% do território nacional. Aceleração da área ardida é uma tendência evidente. Dados do ICNF mostram que, em 31 de julho, a área ardida era de 33.224 hectares. Em apenas três semanas de Agosto, esse valor disparou para mais de 222 mil hectares. Este pico no mês de Agosto, com incêndios de grande dimensão, reforça a tese de que Portugal enfrenta um problema de “grandes incêndios”, que consomem a vasta maioria da área total.
Vítimas e Feridos
O balanço humano da tragédia é trágico. No total, os incêndios provocaram três vítimas mortais, incluindo um bombeiro. A terceira vítima foi um homem que operava uma máquina de rasto em Mirandela, Bragança, na noite de terça-feira, a quem a ANEPC deixou condolências. Além disso, um bombeiro e um enfermeiro estão entre os feridos graves. O número de feridos ligeiros é superior, com a Protecção Civil a confirmar que vários bombeiros foram assistidos no terreno.
A Resposta do Dispositivo
A Protecção Civil anunciou a decisão de manter o “estado de prontidão especial de nível quatro” até ao final de Sexta-feira. A medida visa garantir o pré-posicionamento de meios e a máxima prontidão do dispositivo. Os planos distritais de emergência e protecção civil de Coimbra, Guarda e Castelo Branco continuam activados, evidenciando a concentração dos esforços de combate nestas áreas. Numa aparente contradição com esta decisão, o Secretário de Estado da Protecção Civil, Rui Rocha, havia referido em entrevista na Terça-feira à noite que a “situação de alerta” não seria prolongada devido à previsão de uma descida das temperaturas e um aumento da humidade. Esta discrepância entre a decisão operacional e a declaração política levanta questões sobre a coordenação e comunicação na gestão da crise. O facto de o autarca do Fundão ter expressado preocupação com a falta de meios aéreos durante a tarde, embora a ANEPC tenha referido o reforço de aviões Canadair, aponta para um problema de alocação de recursos em tempo real, um desafio recorrente na gestão dos grandes fogos.
O Rasto Económico e Social
A fartura dos incêndios é pesada. O impacto económico é estimado em cerca de 2,3 mil milhões de euros até 19 de Agosto, de acordo com o presidente da Direcção Regional Norte da Ordem dos Economistas, Carlos Brito. O especialista detalha que estes custos não se limitam ao combate directo, mas incluem a perda de habitações, recursos naturais, explorações florestais e agrícolas. Os efeitos indirectos, como cancelamentos e quebras na procura no turismo rural, também são significativos, podendo atingir dezenas de milhões de euros. Acrescem ainda os custos sociais e de saúde, que vão desde internamentos respiratórios até ao trauma psicológico nas comunidades. A resposta a este impacto tem levado a uma maior procura por seguros contra incêndios, com seguradoras a promoverem apólices multirriscos que incluem este tipo de cobertura. Os portugueses são aconselhados a verificar se os seus seguros cobrem danos provocados por incêndios florestais e a reportar os sinistros o mais rapidamente possível.
A Dimensão Criminal
Os números da Polícia Judiciária (PJ) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) reforçam a dimensão humana e criminal do flagelo. A PJ deteve este ano, pelo menos, 52 suspeitos do crime de incêndio florestal, com cerca de metade das detenções a ocorrerem em Agosto. As causas dos incêndios registados pela GNR mostram que 24% resultaram de “incendiarismo” (fogo posto) e 30,2% do “uso do fogo”, como queimas descontroladas. No plano legal, 22 pessoas condenadas com pena suspensa pelo crime de incêndio estão neste momento com pulseira electrónica, obrigadas a permanecer em casa nos meses de maior risco de ocorrência de fogos. A medida, prevista na lei desde 2017, é uma das formas de resposta do sistema judicial.