O contrato entre a Carris e a empresa privada que faz a manutenção do Elevador da Glória deixa claro que a substituição do cabo de tração não cabia ao prestador, mas sim à própria Carris. OREGIÕES revela, em exclusivo, o documento que prova essa responsabilidade directa

OREGIÕES teve acesso, em exclusivo, ao contrato n.º 036/2022, celebrado entre a Carris e a MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, Lda. O articulado é explícito: «Ficam excluídos da prestação de serviços de manutenção (…) o fornecimento dos cabos de tração». O documento encontra-se assinado por ambas as partes e mantém-se em vigor.
Contrato esclarece obrigações
O acordo estipulava que a MNTC deveria assegurar a manutenção preventiva, preditiva e correctiva, bem como a desmontagem e montagem dos cabos já fornecidos. Porém, a aquisição do material, incluindo o cabo de aço reforçado que serve o funicular da Glória, ficava sob responsabilidade da empresa municipal.
Componente 1:
- Assistência permanente, nos termos da cláusula 3ª da Parte II – Especificações Técnicas do caderno de encargos;
- Serviços de Manutenção preventiva, preditiva, curativa e corretiva abrangendo sistemas, órgãos e componentes, incluindo as estruturas e caixas, bem como desmontagem e montagem dos cabos de tração;
3. Fornecimento de materiais necessários para a manutenção, incluindo massas e óleos lubrificantes necessários, das marcas em uso na CARRIS e de acordo com os esquemas de lubrificação em vigor.
Como já vimos, o famigerado “cabo” estava fora. Mas há mais:
«4. Ficam excluídos da prestação de serviços de manutenção, objeto do contrato a celebrar, os seguintes serviços:
- Limpeza interior das cabinas de passageiros;
- Lavagem exterior;
- Todos os trabalhos de manutenção e limpeza da via-férrea;
- Todos os trabalhos de manutenção da rede aérea; e. A manutenção dos sistemas de alimentação de energia elétrica ate ao disjuntor de alimentação das máquinas (exclusive);
- Reparações intermédias e gerais das caixas dos Ascensores e Elevador, prestadas por outro fornecedor da Carris, que se preveem ocorrer, alternadamente, de 2 em 2 anos (por equipamento). A execução destes serviços implica a suspensão parcial dos trabalhos a executar no âmbito do contrato a celebrar, que será, previamente, comunicada pela Carris com a antecedência mínima de 30 (trinta) dias.
- Manutenção e/ou reparação de sistemas/equipamentos instalados e a instalar pela CARRIS (Bilhética, Videovigilância e outros);
- Fornecimento dos cabos de tração.»
Isto é, a MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, Lda não passava de uma pequena empresa que ia passando, periodicamente, nos elevadores e funiculares e avisava a Carris se havia ou não algum drama. Todos os outros serviços, embora os mais importantes e pesados, estariam nas mãos de terceiros e da própria empresa municipal.
Demoras e procedimentos internos
Segundo técnicos ligados ao processo, a reposição de peças de grande porte, como cabos de aço, exigia frequentemente consultas ao mercado e concursos públicos. Esse processo burocrático alongava os prazos e criava dificuldades acrescidas à manutenção regular.
Uma fonte conhecedora do sistema explica que «a Carris era obrigada a lançar procedimentos próprios para a compra dos cabos, o que podia arrastar-se por meses». O mesmo interlocutor sublinha que, nestes casos, a MNTC apenas registava o problema e aguardava instruções.
Tragédia expõe fragilidades
O acidente no Elevador da Glória, considerado já a mais grave tragédia em espaço urbano desde os incêndios de 2017, revelou as fragilidades da gestão técnica e contratual. A partilha de responsabilidades entre empresa pública e privados criou zonas cinzentas que, na prática, atrasavam soluções rápidas.
O documento consultado pelo OREGIÕES confirma que a Carris assumia formalmente a responsabilidade pelo fornecimento do cabo. Este dado pode ter implicações directas na investigação em curso, que procura apurar causas e responsabilidades do sinistro.
Investigação em curso
O Ministério Público continua a reunir provas e a ouvir testemunhas. A Inspecção-Geral de Finanças e a Autoridade de Mobilidade e Transportes também foram chamadas a analisar os contractos da Carris com fornecedores externos.
Entretanto, famílias das vítimas exigem celeridade e clareza. «Queremos saber quem falhou e por quê», disse ao OREGIÕES um porta-voz do grupo de familiares. A mesma fonte acrescenta que «a verdade tem de vir ao de cima, custe o que custar».
A Carris ainda não prestou declarações oficiais sobre o conteúdo do contrato revelado. Questionada, a empresa limitou-se a referir que «colabora plenamente com as autoridades competentes».
O OREGIÕES vai prosseguir a investigação e acompanhar os desenvolvimentos de um caso que já abalou Lisboa e todo o país e é o mais grave desde os incêndios de 2017.