No início do novo milénio, atravessei o Saara Ocidental em missões humanitárias promovidas pela delegação de Tomar da AMI. Transportávamos alimentos, medicamentos e bens de primeira necessidade, em caravanas de jipes, por desertos esquecidos pela geopolítica. Em plena guerra entre Marrocos e a Frente Polisário, respeitava-se a neutralidade da ajuda humanitária. A solidariedade era reconhecida. A compaixão era protegida, não perseguida. A coragem era celebrada, não punida
Hoje, em 2025, Portugal assiste impassível a um retrocesso ético e civilizacional. Quatro cidadãos portugueses foram capturados por forças militares israelitas, em águas internacionais, durante uma missão humanitária com destino à Faixa de Gaza. Levavam esperança, não armas. Agiam por dever de consciência, não por provocação política. Foram detidos como criminosos. Foram tratados como culpados. E Portugal optou pelo silêncio.
Entre os detidos estão figuras públicas e representantes da cidadania ativa: Mariana Mortágua, deputada e coordenadora do Bloco de Esquerda; a atriz Sofia Aparício; o ativista Miguel Duarte; e o estudante Diogo Chaves. Nenhum deles representa ameaça à segurança internacional. Todos são símbolos de uma sociedade que se recusa a ser indiferente ao sofrimento.
A intervenção da marinha israelita violou princípios elementares do Direito Internacional. Foram intercetadas 41 embarcações civis, incluindo o navio Marinette, que transportava suprimentos urgentes para Gaza. Mais de 470 voluntários de várias nacionalidades foram detidos. Muitos permanecem encarcerados no deserto do Neguev. Nenhum possuía armamento. Nenhum infringia normas internacionais. Todos exerciam o direito à solidariedade consagrado nos tratados internacionais e protegido pelas Convenções de Genebra.
A detenção de cidadãos civis, fora de território soberano, sem mandato judicial válido ou base legal reconhecida, constitui uma violação grave do Direito Internacional Humanitário. A inação do Estado português perante este ato configura cumplicidade por omissão e enfraquece a autoridade moral da República no plano internacional.
A Constituição da República Portuguesa, nos seus artigos fundamentais, consagra a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Quando o Estado abdica de proteger os seus, trai os princípios que sustentam o seu próprio ordenamento jurídico.
Não se tratou de desobediência civil. Tratou-se de obediência à consciência. Criminalizar a solidariedade é perverter o conceito de justiça. Confundir convicções humanitárias com atos ilícitos é sinal de cobardia política e de rendição ética.
Israel anuncia agora a deportação dos detidos. Não clarifica, no entanto, sob que justificação legal os mantém encarcerados. Não há decisão judicial, não há mandato internacional, não há reconhecimento da abordagem marítima como legítima. Trata-se de uma operação extraterritorial, não autorizada e sem cobertura jurídica válida.
Face a estes factos, impõe-se ao Estado português uma resposta inequívoca:
A exigência formal e imediata da libertação dos quatro cidadãos nacionais detidos arbitrariamente;
A ativação urgente dos mecanismos diplomáticos e jurídicos ao dispor do Estado, incluindo o recurso ao Conselho de Segurança da ONU, ao Tribunal Penal Internacional e ao Tribunal Internacional do Direito do Mar;
A condenação pública, clara e firme, das ações do Estado de Israel, enquanto violadoras do Direito Internacional e das normas humanitárias;
A reposição da honra, da reputação e da dignidade dos cidadãos portugueses detidos, publicamente difamados sem julgamento.
Não basta comunicar preocupações em conferências de imprensa. O Estado tem a obrigação constitucional de agir em defesa dos seus. Cada dia de inércia agrava a responsabilidade política e moral dos órgãos de soberania.
As manifestações que tomaram as ruas de Lisboa, Porto, Coimbra e outras cidades mostram que uma parte da sociedade civil ainda se recusa a ceder ao silêncio. No entanto, a resposta oficial mantém-se débil. A apatia institucional transforma-se em normalização da repressão.
A questão que aqui se levanta não se resume a quatro detidos. É uma questão de princípio. É uma interrogação frontal à consciência nacional. Que Estado somos nós, se viramos as costas a quem age por altruísmo? Que país queremos ser, se admitimos que o auxílio humanitário seja tratado como delito? Que valores restam, se permitimos que a compaixão se transforme num motivo de prisão?
Portugal tem de decidir. A escolha está entre o silêncio cúmplice e a defesa da dignidade humana. Entre o conforto da neutralidade e a firmeza da justiça. Entre a conveniência política e a verdade.
Se não agirmos agora, arriscamos mais do que o abandono de quatro cidadãos. Perdemos o que nos resta de autoridade moral. Perdemos o lugar que ocupámos, em tempos, entre as nações defensoras da liberdade. Perdemos a memória dos que, ao longo da nossa História, recusaram ajoelhar perante o medo.
Portugal não pode ser cúmplice de uma ordem internacional onde a solidariedade é punida e a justiça silenciada. Cada cidadão que permanece detido, sem que o seu país intervenha, é um espelho da nossa falência ética. Cada gesto de repressão não denunciado, cada injustiça tolerada, cada silêncio cúmplice — é um golpe contra a nossa própria democracia.
Por isso, deixo uma pergunta que não admite evasivas:
Portugal, que pátria és tu, se deixas os teus filhos apodrecer numa prisão por terem escolhido salvar vidas?
Fernando Jesus Pires
(Jornalista CP-7569)
Diretor do jornal ORegiões
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