Mariana Mortágua anunciou que não se recandidatará à coordenação do Bloco de Esquerda. A decisão, comunicada aos militantes através de uma carta, trouxe à tona um sentimento simultaneamente de descompressão e reflexão. Afinal, durante dois anos e meio, a coordenadora assumiu o timoneiro de um partido que, nas palavras dela própria, continuou a perder espaço eleitoral. Nada mal, se considerarmos que a missão original parecia quase mítica: relançar a esquerda num país em que a direita e a extrema-direita não tiram férias nem férias políticas
A carta de Mariana é uma mistura curiosa de humildade e ironia involuntária. Reconhece que “não cumpriu os objetivos traçados” e que a precipitação de campanhas eleitorais prejudicou a transformação interna do Bloco. Curiosamente, a mesma precipitação que provavelmente fez muitos militantes esquecerem quantas campanhas eleitorais passaram desde a fundação do partido. Se existisse um troféu para a melhor desculpa política, esta carta poderia estar na lista de finalistas.
Não se trata apenas de uma renúncia pessoal. Mariana descreve uma liderança incapaz de inverter a centralização do partido, de neutralizar campanhas de ódio e de relançar o impulso eleitoral. Ou seja, a síntese é clara: a esquerda portuguesa continua a ser um território pantanoso, onde boas intenções esbarram em burocracia e ataques externos. E, no entanto, a carta insiste na confiança absoluta no partido, na militância e na pluralidade de ideias. É quase poético: a resignação e a esperança dançam lado a lado, como num baile de máscaras em que ninguém quer tirar a sua.
A sátira, neste contexto, surge naturalmente. Imagino Mariana a escrever: “Sim, não consegui, mas fiquem tranquilos, o Bloco sobreviverá e até ganhará!” É como dizer: “Perdi a batalha, mas a guerra continua – e, honestamente, provavelmente também não sei quem a vai ganhar.” A honestidade brutal da política encontra-se, por vezes, em frases que misturam derrota e confiança, quase como um anúncio de seguros que promete proteção contra o impossível.
O Bloco de Esquerda atravessa tempos difíceis, afirma Mariana. Não apenas em Portugal, mas globalmente. Esta constatação é irónica: a esquerda mundial enfrenta crises, mas parece sempre ter líderes que se sentem pessoalmente responsáveis pela inevitabilidade do fracasso. E aqui reside a beleza trágica: o Bloco mantém-se unido, diverso, combativo, mesmo quando ninguém consegue provar que o caminho escolhido trouxe resultados palpáveis.
Mariana termina a carta reafirmando a sua presença no partido e a confiança na militância. É o tipo de saída elegante que não fecha portas, mas que deixa os leitores com uma sensação ambígua: gratidão pelo esforço, alívio pela transparência e, claro, um leve sorriso irónico. Afinal, a política de esquerda portuguesa parece um teatro em que cada ator faz o seu melhor, mesmo quando o palco treme sob os pés.
Se há lição a retirar desta renúncia é simples: a política continua a ser feita de sonhos, contratempos e cartas bem escritas. Mariana Mortágua sai de cena, mas deixa um espelho perante o qual o Bloco terá de se confrontar. Resta saber se os próximos líderes se olharão nele e verão oportunidades, ou apenas a inevitável comédia de erros repetidos.
Crónica de Opinião com Sátira
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