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A Batalha dos Dicionários

A diferença entre a paz de um povo e a guerra entre povos pode estar apenas numa palavra, o que explica porque é que certos ministérios contratam poetas para redigir comunicados de rendição. As guerras começam quando um verbo é mal conjugado, e acabam quando um substantivo encontra o tom certo. O “cessar-fogo” é, afinal, uma figura de estilo: uma pausa entre duas respirações do mesmo cadáver geopolítico.

No caso em debate, um topónimo. Um, abre guerra. Outro, resolve problemas.

A ONU, por exemplo, passa metade do tempo a debater a gramática da carnificina e a outra metade a corrigir vírgulas na declaração da próxima tragédia. Se o “não” tivesse um advérbio a protegê-lo, talvez a História tivesse menos crateras. Mas o léxico humano é belicista por natureza: prefere gritar “avanço!” a murmurar “acalme-se”. Até porque, nas nações civilizadas, a diplomacia é uma arte de substituir o sangue por adjectivos.

Os manuais escolares descrevem a paz como um estado natural, o que é verdade — tal como o é o sono profundo dos mortos. Nenhum país se deita em paz sem sonhar com um vizinho conquistado. É por isso que os tratados de cooperação são escritos em linguagem técnica: para ninguém perceber que estão a assinar o convite para a próxima invasão. Há quem diga que a paz se conquista, o que é poético, mas falso — conquista-se a guerra; a paz, quando muito, extravia-se.

O Ministério do Silêncio

Em cada capital há um ministro encarregado de gerir o silêncio colectivo, um especialista em substituir bombas por discursos e mortes por estatísticas. O último deles, o doutor Aníbal Verborrásio, publicou um livro intitulado “Gramática da Bomba de Neutões”, onde explica como transformar insultos em acordos de paz através da pontuação adequada. O problema é que, enquanto ele coloca travessões, os generais colocam minas.

Nas cimeiras, quando se fala em “união entre povos”, o que se quer dizer é “união entre exércitos disfarçados de diplomatas”. É o Carnaval da humanidade: todos mascarados de tolerância, à espera que a banda comece o hino da próxima catástrofe. As palavras “solidariedade” e “fraternidade” têm mais horas de voo que qualquer drone, mas menos impacto. O que realmente une os povos é a curiosidade mórbida de ver o inimigo render-se com boa dicção.

Se a paz tivesse um departamento de marketing, talvez conseguisse vender-se melhor. Poderia lançar um novo logótipo, mais apelativo que a bandeira branca, talvez um “like” universal em forma de pomba pixelizada. Mas o público já se habituou ao som dos noticiários bélicos, que são a banda sonora ideal para o pequeno-almoço: estaladiça, quente, previsível. Afinal, quem precisa de música quando há explosões com horário fixo?

A Paz e os Seus Sinónimos Mortos

Diz-se que o homem é o único animal capaz de conversar antes de matar, o que só prova que a evolução tem sentido de humor. Nenhuma fera anuncia a dentada com uma conferência de imprensa. E, no entanto, a humanidade insiste em redigir comunicados antes de enterrar as vítimas. “A paz está próxima”, dizem sempre, como se fosse um comboio em atraso, anunciado por alto-falantes que só funcionam depois do desastre.

Os dicionários estão cheios de palavras que morreram em serviço: “reconciliação”, “tolerância”, “humanidade”. São cadáveres lexicais, empalhados pela retórica dos que as mataram. De vez em quando, um líder mundial ressuscita uma delas num discurso, com o mesmo entusiasmo de quem recicla um anúncio antigo. O público aplaude, comove-se, e regressa tranquilamente ao campo de batalha digital.

A diferença entre a paz de um povo e a guerra entre povos pode estar apenas numa palavra — e talvez por isso o planeta continue mudo. As palavras foram tantas que se suicidaram de exaustão. Hoje, a verdadeira paz é o silêncio: não porque traga descanso, mas porque já não há nada de inteligente para dizer. E assim, num mundo alfabetizado até à loucura, o único idioma comum é o eco do disparo.

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Joao Vasco Almeida
Joao Vasco Almeida
Editor Executivo. Jornalista 2554, autor de obras de ficção e humor, radialista, compositor, ‘blogger’,' vlogger' e produtor. Agricultor devido às sobreirinhas.

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