Um artigo editorial de semi-opinião no Correio da Manhã resolveu dar-se ares de tribunal de Inquisição, sugerindo que Teresa Caeiro teria escolhido a morte como quem assina o contrato de uma operadora de telecomunicações: sem ler as letras pequeninas. O nome apontado, quase em néon, foi Miguel Sousa Tavares (MST), escritor de «Oquador» — obra que já aquece por título, como se fosse o manual oficial de pesca ao escândalo. A crónica parecia escrita em sangue de impressora barata, com a leveza de um obituário redigido por um carrasco. O leitor, entretido, sorriu como quem assiste à tourada grátis: há sempre mais prazer quando o touro já chega ferido à arena
As prateleiras do boato em promoção
Nos dias seguintes, a internet funcionou como supermercado da infâmia: acusações veladas à esquerda, calúnias explícitas à direita e, ao fundo, o corredor promocional com a cara de MST em tamanho XXL. Para o povão, ele passou a ser o “autor moral” de uma morte que não merecia, de modo algum, essa coreografia de hienas. O julgamento digital decorreu sem advogado, sem juiz, mas com milhares de carrascos armados de teclados. O resultado? Um linchamento público vendido em prestações, com juros de maledicência. E tudo embrulhado num papel pardo de “justiça popular”, tão justo como um sorteio onde o prémio é um buraco.
O eco estridente da turba satisfeita
MST quebrou o silêncio uma vez e, depois, despediu-se do jornal “Record”, primo do Correio da Manhã e tio afastado da decência. Mas a sua ausência foi tratada pelos algozes como mais uma “confissão”. No mundo invertido da opinião fácil, o silêncio é culpa, a palavra é culpa, a respiração é culpa. Se tossir, é prova irrefutável. Esta sub-espécie de jornalista tornou-se personagem de reality-show em que ninguém o inscreveu, e onde os espectadores não votam para expulsar, apenas para crucificar. É o novo entretenimento nacional: pendurar reputações como quem pendura bacalhaus ao sol, até tresandarem.
As espadas invisíveis do interesse
O que lhes vai na alma cibernética, cheia de “achismos” e “suspeitas”, não vale a crucifixação pública de ninguém. Nunca casei com Sousa Tavares, sei lá se grita ou se declama versos, se bate ou se é batido, se escreve deitado ou de cócoras. Mas jornais não servem para mandar bocas de tasca em letra Times New Roman. O interesse público não é o mesmo que o interesse do público: a diferença é simples como distinguir vinho e vinagre, embora ambos ardam no estômago. Mas o novo jornalismo prefere despejar vinagre, porque brilha mais na mancha tipográfica. E quanto mais ácido, mais vende — o que prova que o país não precisa de informação, mas de azia colectiva.
O circo das certezas instantâneas
A modinha agora é seguir o Interesse do Público, esse monstro guloso que devora dignidades em directo, com direito a aplauso final. Julgar em praça pública a partir de boatos tornou-se o passatempo favorito de uma sociedade que já não joga à sueca, mas à suspeita. Matam-se reputações como quem troca cromos: “dou-te uma calúnia repetida e recebo uma difamação fresquinha”. Miguel Sousa Tavares, contra quem já testemunhei em tribunal e sobre quem não me recai simpatia especial, merece defesa neste caso — até porque até os nossos inimigos devem ser protegidos quando a forca é erguida na rotunda da ignorância.
O festim dos abutres bem-pensantes
E mais merece Teresa Caeiro, cuja morte, longe de ser lamentada com sobriedade, foi convertida em banquete para abutres com fome de atenção. A cada notícia, a cada “post”, a cada comentário, um pedaço da sua memória foi vendido ao quilo na praça pública. O cadáver tornou-se moeda de troca, e a dor, material reciclável para colunas de opinião em busca de “engajamento” de feira. Que dia luminoso!, bradam as manchetes — e o leitor atento percebe que, na verdade, chovem cadáveres, e que todos abrem o guarda-chuva como se fosse uma bandeira.
Tudo em papel molhado
No fim, a tragédia não é de Teresa, nem de Sousa Tavares, mas nossa: a de um jornalismo que trocou a bússola pela ventoinha, para ver para onde sopra o clique. Não é de admirar que já haja quem proponha substituir tribunais por caixas de comentários e juízes por directores de tablóides (que, quando bem feitos, são os melhores jornais do mundo). A conclusão, portanto, é clara: a próxima Constituição será escrita na secção de fofocas, com carimbos de emojis e assinatura reconhecida por “likes”. Justiça servida? Sem dúvida. Tal como um peixe cru esquecido ao sol de Agosto: apodrece depressa, mas, enquanto fede, enche a praça de curiosos.