Peço desculpa. Ontem, no meu jogging de palavreado, confundi a Kina com a Kika. Ou a Kika com a Kina, como desejarem, porque a esta altura já nem o Altíssimo distinguiria uma da outra sem recorrer a uma aplicação de reconhecimento facial do século XXII. Falei da Kina como se fosse a Kika, vejam bem, quando a Kika nada tem a ver com a Kina, embora ambas partilhassem a rara capacidade de deixar o público entre a bocejadela e a veneração.
A Kina nunca quis ser rainha das crianças; somente quis ser rainha das etiquetas bordadas a fio dourado, com preços capazes de provocar enfartes múltiplos a qualquer salário mediano.
A arte perdida de confundir vivos e mortos
Como pude eu confundir, a trinta anos de distância, a Kika da Kina? Pergunto-me, zangado e exangue, como quem descobre que o frigorífico guarda cadáveres em vez de iogurtes. Como pode o cérebro de uma pessoa confundir a Kika (que já faleceu) com a Kina (que ainda não morreu), senão por uma sofisticada conspiração neuronal digna da NASA em férias? Para que servirá este desprezo pelos famosos que querem ser famosos, senão para lhes dar a dignidade eterna de se confundirem entre si, como se fossem personagens secundárias de uma telenovela da TV Rural?
A Kina foi, sim, uma “estilista” de modinha cara para um público ávido, saído dos anos oitenta, com francas alergias ao pó e a fungos. E fungava em ambos, como se fosse a prova final da passerelle biológica. Como me esqueci que a Kina, meu deus, de seu nome D. Joaquina Branco, casou nova com um idoso abastado e cumpriu sonhos de chegar à ribalta (não a Paris ou Milão), mas sim à passarela imaginária das Avenidas Novas? E cumpriu-os por via da sua arte de desenhar, cortar, coser e cozer, misturando alta-costura com o menu do forno lá de casa.
Entre entrevistas, silêncios e copos entornados
Penitencio-me, leitor, como um padre que troca as hóstias por pastilhas elásticas de hortelã. Pois ontem contei a história de uma entrevista que fiz, jovem, à Kika, e ontem pensei que a Kika era a Kina. Afinal entrevistei ambas, mas não nos terrenos algarvios de fim-de-semana barato.
Uma sim, a Kika, já falecida. Já a Kina foi logo a seguir, e como eram absolutamente iguais em presença, perfume e falta de pudor, em vez de ir confirmar a grande carreira que Kina teve, fiei-me nos neurónios e zás: o copo entornado, a cronista desgraça servida em bandeja.
O olho que tudo vê e o jogo Arouca-Tondela
Kina não é Kika. Kika não é Kina. Kika já kinou, com honras discretas de obituário regional. Kina está aí para kikar a vida para a frente, em desassombro televisivo no programa “Big Brother”, o olho que quase tudo vê e quase tudo esquece. Esse mesmo olho que só perde em audiência para um estimado jogo Arouca-Tondela, onde onze contra onze se confundem tanto como as minhas memórias neuronais entre estilistas de bairro e rainhas da caridade televisiva. No fundo, cada confusão destas é um pequeno triunfo do esquecimento, esse verdadeiro reality show em que todos somos concorrentes.
Kika, perdoai-me. Kina, mil desculpas. Foi confusão e das graves, como trocar uma missa solene por um karaoke em Albufeira. Já tenho o silício pronto, e não falo do da tecnologia: falo da versão medieval, para usar à cintura enquanto repito em coro a ladainha “Kina não é Kika”. E se me penitencio, é com coração pesado, mas também com a esperança de que, nesta pátria amnésica, ninguém repare demasiado. Afinal, viver em Portugal é isto: confundir vivos com mortos, rainhas com costureiras e programas de televisão com tratados de filosofia. E, no final, descobrir que foi tudo uma grande ‘Kinetrafalhice’.